Na segunda à noite passei pela estranheza de reaprender como se assiste televisão. É que o streaming no Youtube estava soluçando, e eu tinha que acompanhar a entrevista que todos (na timeline, ao menos) estavam discutindo. E o que vi na televisão foi justamente um daqueles sinais de que este veículo (e qualquer outro que imponha o quê e como assistir) já começa a não mais fazer sentido. Era a “Mídia Ninja”, na figura de dois de seus “articuladores”, no “Roda Viva”.
Os entrevistadores eram eméritas figuras da “grande imprensa” e os entrevistados eram um jovem de gestos malabarísticos e outro de semblante cool. Os primeiros entendem que o jornalismo é um processo complexo envolvendo longa formação profissional, delicadas relações institucionais e colossais estruturas corporativas que dão recursos para captar, processar, editar e distribuir a informação para o público. Já os entrevistados estão na rua mostrando o que está acontecendo e conversando com as pessoas. E com isso conseguiram o que a “grande midia” não consegue: deram voz e força a manifestações que cresceram a ponto de acuar governadores dos estados mais ricos da federação.
Na tentativa de entender (ou cooptar) o fenômeno, a bancada tentou encaixar a Midia Ninja nos moldes que conhece: “modelo de negócios”, “partidos”. Mas como é possível alinhar o que é “fora do eixo”? A eventual filiação partidária não é a questão, quando se constata que a Mídia Ninja não está por trás das manifestações. Está nas manifestações. O que há de notável nesse novo “veículo” não é seu posicionamento, mas sim sua posição — todas elas, na rua, nos gabinetes, nas casas, na rede. Agora qualquer celular é um canal de televisão. Qualquer mídia social é uma rede de comunicação. A tecnologia banalizou-se a ponto de permitir que o indivíduo deixe de ser apenas espectador e torne-se também emissor. “Na web, todo cidadão pode ser, em tese, fornecedor de notícias. O mérito da Mídia Ninja é reunir alguns desses cidadãos num projeto comum” disse, ressabiada, a jornalista e net-cidadã Cora Rónai. É nisto que reside a ruptura trazida pela Mídia Ninja. Não é um grupo de comunicação ou um partido ou um veículo, é um aglomerado transitório de pessoas agrupadas por afinidade que se deram conta do poder de que agora dispõem — o de decidir o quê e como querem consumir, e produzir, informação.
Este é um mau presságio para o futuro da indústria da informação (que anda caindo do pedestal) — e também para a indústria editorial, fonográfica ou qualquer setor econômico que viva de formatar e vender ideias (ou, vá lá, “cultura”). Esse novo poder dos espectadores/leitores, que agora geram e compartilham conteúdo, significa (em termos do século passado) que os “meios de produção” passaram para a mão dos consumidores. As pessoas estão trocando a qualidade HD do telejornal pelas imagens tremidas e depoimentos desconexos transmitidos por celulares. Porque isso lhes dá (a sensação de) poder. Porque isso lhes faz sentir que não estão mais na ponta inferior da cadeia de consumo, estão no centro de uma rede (e, na rede, qualquer ponto é o centro). Porque agora têm voz. Quem assiste à Mídia Ninja não está reclamando da falta de edição — está celebrando a edição pessoal, está “libertando sua narrativa”.
“Não só os jornalistas é que têm de apreender (sim, o verbo é ‘apreender’) com essa nova maneira de dar (e receber) a notícia. Os escritores idem, por favor, abram os olhos. Para fora das academias. Das grandes editoras. É preciso, sempre, fazer alguma coisa.”, disse Marcelino Freire, um autor que passou do mimeógrafo para as grandes editoras e quer ir além.
Se os autores devem abrir os olhos, os editores devem arregalá-los. Em tempos de transição de poder para o leitor (autopublicação, crowdsourcing etc) e novas formas de consumir ideias e narrativas (livres ou não, em livro ou não) logo será necessário escolher entre ser Ninja (ágil, múltiplo e engajador) ou Kamikaze (e morrer honrosamente pela glória de um império sem futuro). Banzai!
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
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