Publicidade
O autor usado pela internet usada pelo autor
PublishNews, 26/09/2013
O autor usado pela internet usada pelo autor

“Você acha que usa a internet, mas está sendo usado por ela” diz o escritor Bernardo Carvalho. A ocasião foi o lançamento de Reprodução. O livro foi, segundo a matéria de Raquel Cozer, escrito “a partir do cenário ‘libertário’ e ao mesmo tempo ‘cheio de ódio’ da internet”.

Não é de hoje queele se preocupacom a internet, ou que (bons) escritores alertam para os males da rede, mas enquanto um Scott Turrow o faz por razões corporativistas (é presidente da Associação dos Autores dos EUA) e um Johnathan Franzen, pelo gosto dândi-decadentista, Bernardo usa de sua “literatura de reflexão” para tratar do seu incômodo.

Em Reprodução, o personagem que encadeia a narrativa não tem controle, ou consciência, do que se passa. O título se refere a ele, que troca a reflexão pela reprodução automática da algaravia fascistizante das redes sociais. A ele o autor se refere como “estudante de chinês”, e os outros personagens o descrevem como “boçal”. É o adjetivo perfeito. “Boçal”, na origem do termo, era o escravo africano que chegava ao Brasil, não conseguia aprender o português, sofria de banzo, e por isso era tratado como idiota. (O oposto do xingamento “boçal” era o elogio “crioulo”, o negro que já era “criado” no Brasil, sabia a língua, era safo).

O “estudante de chinês” é o boçal do século 21: não consegue aprender a língua dos senhores (os chineses, como ele repete ao longo do livro), se desespera para fazer parte do novo ambiente (lê “revistas semanais”, jornais) e expressa seu banzo pelo passado vituperando (ou repetindo os vitupérios) nas redes sociais. É o idiota-útil “usado” pela internet, achando que a internet, por lhe dar voz (para papagaiar o coro dos anônimos), lhe confere poder. O uso de “línguas” como metáfora da internet matando a literatura está ainda na história do assassinato do último índio que falava a única língua capaz de pronunciar o nome de Deus. Ao cancelar distâncias e expor o mundo como “aldeia global” e inviabilizar a existência de aldeias remotas (“a diversidade é um repositório de adaptabilidades”), a internet estaria matando a chance de encontrarmos a pureza, a língua única para falarmos com Deus, trocando-a pela língua que todos falam e que não quer dizer nada, o chinês.

A China do “estudante de chinês”, por sinal, é uma perfeita metáfora para a própria internet: avassaladora, irrevogável, vulgarizante, desumanizadora e, sobretudo, com uma língua que é simples demais para fazer algum sentido. “Uma em cada três pessoas fala chinês”, “os chineses serão os novos senhores”, repete o “estudante de chinês” ao longo do livro. É na China, porém, que o autor situa uma “parábola” que ilustra sua denúncia de “infantilização do público da literatura pela internet”.

Conta a parábola que, num vale remoto de uma aldeia longínqua da China, um sábio escreveu um tratado sobre velas de cera, o que lhe trouxe fama e criou uma dinastia. Mais tarde, com a chegada do lampião, que iluminava o vale como uma “nuvem de vaga-lumes”, “o tratado escrito fazia séculos pelo patriarca passou a ser lido como poesia”. Mais tarde ainda, com a chegada da lâmpada elétrica e a nivelização brutal da Revolução Cultural, a herança e os ensinamentos do patriarca chinês tornaram-se motivo de vergonha burguesa. A metáfora aqui é escancarada — a luz é o conhecimento, a reflexão, a literatura em suma. É divina quando é remota (cera), redentora quando é para poucos (lampião) e perde todo o sentido e valor quando é para todos (lâmpada).

Há um conflito intrínseco entre a literatura de Bernardo Carvalho e a internet. Narrativas como Nove noites e Mongólia partem do árido e progridem aos poucos desvendando novas camadas de significados, dando sentido(s) à narrativa. É uma literatura em que é preciso descobrir camadas, sucessivas e cada vez mais puras, como uma cebola. A internet é a anticebola: todas as camadas estão expostas e refogadas. Há tanta informação que ela volta a perder sentido, torna-se apenas estímulo improcessável. Um acelerador hormonal. Escrever como Bernardo Carvalho no ambiente da internet é como fazer um teatro de sombras ao sol a pino.

A síntese está na página 153. A internet é “um diálogo de surdos. Só um decide o que quer ouvir e o que o outro vai dizer”. Uma definição precisa, talvez. Porém, pensando bem, a definição presta-se perfeitamente à própria literatura: “inventar o que o personagem vai dizer e assim decidir o que o leitor quer ouvir. Os chineses vêm aí.

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[25/09/2013 21:00:00]
Leia também
Em seu último relato sobre sua primeira participação na Feira de Bolonha, Julio Silveira conta o que viu, o que não viu e o que aprendeu com o evento
No seu segundo dia na Feira do Livro Infantil de Bolonha, Julio Silveira fala sobre as tendências que identificou no evento
Em seu primeiro dia na Feira do Livro Infantil de Bolonha, Julio Silveira faz comparações entre o evento italiano e a Feira do Livro de Frankfurt
Já é possível escrever e ilustrar um livro inteiro em algumas horas com inteligência artificial. O que isso significa para o mercado das ideias?
Portugal reabre livrarias e editoras brasileiras já podem participar da retomada
Outras colunas
Colunista vislumbra "no audiolivro uma oportunidade de desenvolvimento dos leitores no Brasil, que tanto precisa de educação e que representa o estímulo natural à criatividade do brasileiro". Artigo, na íntegra, aqui!
É nesse espírito que se insere o painel 'Sustentabilidade em cada página: o livro como ponte entre conhecimento e clima', promovido pela CBL, em parceria com a OEI, em Belém
Em 'Amazônia: vida, utopias e esperanças', Marcílio de Freitas argumenta por que a proteção socioecológica do planeta encontra-se em processo de colapso
O episódio dessa semana foi até a Sala Tatuí conversar com Beto Ribeiro, sócio administrador da Livraria Simples, e João Varella, da Lote 42
Seu mais recente projeto, 'Cuentos fantásticos / Contos fantásticos', é uma antologia bilíngue ilustrada que celebra a criatividade de crianças entre 10 e 11 anos