
Um dia antes de viajar à Brasília para divulgar o novo livro, Itamar falou sobre o gostinho especial de encerrar a trilogia e sobre o sentimento criado por esse universo literário nos últimos oito anos de sua vida. "Para mim, foi um mergulho muito profundo nessas narrativas. Na relação de homens e mulheres com a Terra em diferentes tempos e atravessando diferentes lugares", afirma.
O objeto livro
Sem nenhum preconceito literário “consciente”, Itamar se coloca como uma pessoa que tem fetiche pelo objeto livro. Em sua mudança de Salvador para o Rio de Janeiro, levou um caminhão cheio com seus volumes. "O lugar que eu mais me sentia confortável na infância e na adolescência eram as bibliotecas", diz.
O autor trata o livro como a um afeto: "Eu preciso vê-los e observá-los, mesmo que eu não consiga ler todos durante a minha existência. Eles precisam estar ao meu redor, sinto a necessidade de estar falando sobre e vivendo com o livro". Ele assume que, quando jovem, o objeto era escasso em sua vida e, por isso, foi gradativamente se tornando um acumulador. Por isso, preza tanto pelo tempo que passa em casa, pela relação que passou a ter com suas estantes, cada vez mais numerosas.
O romance Coração sem medo será publicado em Portugal, Austrália, Índia, Reino Unido, EUA, África do Sul, Quênia e Canadá. Torto arado, lançado em 2019, já tem previsão de publicação em 55 países e 33 idiomas, e Salvar o fogo, de 2023, em 30 países e 12 idiomas. Itamar fará uma turnê de lançamento pelo país, em que passará por cinco metrópoles, até o dia 1º de dezembro.
Repercussão das obras e ofício da escrita

Itamar está em um ponto de carreira diferente do que estava em 2019, ano de lançamento de Torto arado. Atualmente, se encontra de licença do serviço público que desempenha no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como analista agrário, e pratica uma rotina de escrita diária, especialmente durante os meses que se afasta da cobertura midiática de suas obras.
Em outras ocasiões, o escritor já confirmou que tem romances escritos na íntegra, mas que jamais verão a luz do dia. Na sua visão, nem tudo deve ser publicado: as obras devem ter certa consonância com elementos como tempo e o público: “elas devem dialogar com o seu projeto literário, com o momento em que você está vivendo; nós aprendemos a filtrar aquilo que deve ser publicado e aquilo que não deve”.
"Ninguém espera ser unanimidade. A experiência humana é muito diversa, tanto pelas nossas origens quanto pela nossa experiência social, única, e isso influencia naquilo que será um livro. O trabalho literário vai além do projeto estético e é algo difícil de mensurar". Ele relata que, toda vez que inicia um livro, não fica satisfeito com o começo, e que é necessário um esforço contínuo de refino para encontrar o tom. Para ele, é possível escrever dez capítulos e depois deixar o texto de lado. Depois, recomeça o trabalho de outra maneira, a partir de outra perspectiva, mudando o foco narrativo, testando primeira ou terceira pessoa, repensando o momento em que a narrativa deve começar.
Itamar define essa atividade como parte essencial do trabalho, que exige, antes de tudo, paciência. “Alguém impaciente vai deixar o projeto de lado, pensar que está errando, se encontrou o tom ou não. Mas o encontro com a história só acontece quando se escreve. Apenas escrevendo e experimentando é que se encontra o tom”, comenta.
Para ele, "a atividade de escritor exige rotina". Sem continuidade, o escritor se perde em meio ao processo. Por outro lado, quando busca uma pausa da literatura, Itamar comenta que tem desejo de "fazer coisinhas da vida mesmo" e valoriza passar tempo em casa, com a família, ir ao cinema, ao supermercado, à feira e até mesmo ler um livro despretensiosamente.
Ele define esse processo de afastamento momentâneo como fundamental para sua atividade de escrita. São nesses momentos em que é capaz de refletir sobre seus projetos e abrir espaço para se debruçar sobre a experiência humana no dia a dia, encontrando as pessoas e vendo o desenrolar da vida.

O autor conta que passou, ao longo dos anos, a ser ainda mais crítico com sua obra, e questiona o impacto do tempo nesse processo. Se pudesse trabalhar em outra área da cadeia do livro, acredita que seria um bom editor – para ele, o autor deve ser o primeiro editor de sua própria obra.
Se pudesse bater-papo com um autor, escolheria Machado de Assis, pelo interesse nas inserções ensaísticas do escritor. "Também tenho, às vezes, meu narrador tomando para si essa tarefa de fazer breves inserções ensaísticas no texto ficcional. Gostaria de saber como isso funcionava para ele, para entender, talvez de uma maneira melhor, como isso funciona para mim".
Na posição de leitor, ele comenta que obras que o impactam atualmente não tiveram o mesmo efeito numa leitura feita há 20 ou 30 anos. Um método seu é reler obras que o arrebataram no passado, na tentativa de entender os mecanismos da ficção e de tentar chegar ao âmago daquela história, também como forma de refinar seu próprio estilo.
Um exemplo é sua leitura tripla de A insustentável leveza do ser (Companhia das Letras): aos 18, quando estava em seu primeiro emprego, aos 25, quando passou por uma banca, viu uma edição econômica e quis comprar o exemplar físico, e aos 30, quando tinha passado pela experiência de morte de um animal, que é um tema em comum com o enredo da história do livro de Milan Kundera. "Vivi essa história de maneiras diferentes ao longo do tempo."
Coração sem medo e cuidado feminino
Diferente dos primeiros dois livros da trilogia, Coração sem medo se passa na cidade e passa a tratar do tema das disputas de território no ambiente urbano, mas também das batalhas simbólicas: da luta de uma mãe que tem o desejo de que seus filhos estudem para que tenham empregos diferentes dos dela e da sua incansável busca de respostas pelo filho desaparecido. Itamar afirma que vem de uma experiência pessoal familiar em que o cuidado desempenhado pelas mulheres se impregnou em seu imaginário, e que elas poderiam ser consideradas como heroínas. "Elas eram atingidas pelas mesmas violências a que os homens estavam sujeitos, mas violências adicionais da estrutura patriarcal e machista. É um lugar de grande vulnerabilidade, mas ao mesmo tempo elas não se dobravam a essa vulnerabilidade. Elas reagiam de uma maneira que se fixou no meu inconsciente", afirma.
Ele diz que essas histórias tocam no legado colonial do país – o cuidado é um atributo que muitas mulheres carregam para si. Sua hipótese é de que essas mulheres são revolucionárias, porque lutam para sair de um estado de subalternidade, em uma posição narrativa de ruptura. Em um dos capítulos do livro, Donana, que é avó de Belonísia e Bibiana e bisavó de Rita Preta, protagonista de Coração sem medo, cita uma chama que a move para romper com destinos previamente traçados para ela.

"Compreendeu [Donana] que a força que a movia pela terra à sua procura [Zeca] se sobrepôs ao medo e à incerteza, e era a chama a mantê-la viva. Chama que manteve vivos os que chegaram antes. Chama que precisaria ser alimentada de novo e sempre pelos sobreviventes, todas as vezes que a vontade de viver e de transpor o destino herdado estivesse ameaçada" (Coração sem medo, p. 93-94).
Itamar comenta o trecho dizendo que essa é uma alegoria de algo inquebrável dentro da nossa humanidade, nem mesmo na mais adversa das violências, como no caso da diáspora e da resistência desempenhada por esses herdeiros da diáspora, ao longo de suas vidas.
Quando questionado sobre o que seria a coisa mais importante para um indivíduo, Itamar explica que é a "pulsão de vida", responsável por nos fazer levantar da cama. "Essa pulsão de vida move muita coisa que está à nossa volta. É algo que preciso lidar cotidianamente quando escrevo. E por que escrever? Por que contar histórias? Por que retirar de si algo que poderia muito bem continuar ali dentro? Esse ímpeto de vida é o que faz com que a gente levante, tenha projetos, tenha vontade de transpor barreiras, de ir a lugares novos, distantes, experimentar coisas novas. É isso que guia a criação."


