“Eu não acho que a literatura precise ter sequer a intenção de se envolver na política”, disse – essa é a sua terceira aparição pública desde o ataque, e o esquema de segurança ao seu redor é profissional e rigoroso. Dezenas de seguranças estavam no local da coletiva, e houve revistas a sério de bolsas e mochilas. A orientação era para que os jornalistas permanecessem sentados durante toda a entrevista, bem como no momento da saída do autor do auditório. Ele ficou numa bancada protegida, afastada cerca de 10 metros do entrevistador mais próximo. Mas Rushdie posou para fotos, respondeu a todas as perguntas, citou colegas, amigos e escritores que admira – e fez tudo isso com simpatia.
“Vocês parecem um bando assustador daqui”, brincou o autor quando questionado sobre a segurança. “Eu passei os últimos dias em Frankfurt o tempo todo com jornalistas, foi maravilhoso”, comentou ainda, arrancando risos dos cerca de 100 colegas presentes na sessão.
“Não tenho familiaridade com o trabalho dela, mas sei que ele tem sido recebido positivamente em vários lugares”, disse Rushdie. “Tenho simpatia pela posição dela. Espero que o anúncio do ‘adiamento’ não seja um eufemismo para cancelar a entrega de vez. A melhor coisa que poderia acontecer é ele ser rearranjado o mais breve possível”.
Sobre os ataques do Hamas e o conflito na Palestina, foi peremptório: “Não tenho uma posição original sobre a guerra, sou totalmente contra. Pessoas inocentes morrem, e a verdade é uma das primeiras baixas de uma guerra. É difícil saber o que acontece. Estou horrorizado com o ataque do Hamas, e com a possível resposta de Netanyahu”.
Ao comentar a queima de exemplares do Alcorão na Suécia – fato que motivou um ataque terrorista na segunda-feira (16), em Bruxelas, contra cidadãos suecos –, Rushdie também lamentou, e se colocou de maneira previsível contra a queima de livros, sejam ele de qualquer assunto. Ele lembrou uma frase do poeta alemão Heinrich Heine: “onde se queimam livros, pessoas serão queimadas em seguida”.
Inteligência artificial
Outro tema bastante discutido em Frankfurt esse ano, a inteligência artificial, apareceu na conversa. “Alguém me mostrou uma parágrafo escrito pelo ChatGPT ‘no estilo de Salman Rushdie’. Era um lixo total (risos). Tenho preocupações com softwares que imitam as vozes das pessoas, ou o deep fake em vídeo, isso é perigoso. Mas sobre a palavra escrita, não estou preocupado por enquanto… o ChatGPT não tem senso de humor, originalidade, nenhum editor nessa feira publicaria algo que ele escreveu”, comentou. “Mas a questão é que essas inteligências artificiais aprendem muito rápido. Então minha opinião pode mudar daqui a 10 minutos”, comentou.
Novo livro sobre o ataque
Na semana passada, a Penguin Random House anunciou para abril de 2024 a publicação do livro do autor sobre o ataque, com o título Knife: Meditations after an attempted murder. “Pareceu importante escrever sobre isso, foi muito pessoal. O que senti foi que seria impossível escrever sobre qualquer outra coisa antes de lidar com esse assunto”, explicou na entrevista.
Em agosto de 2022, o autor sofreu um atentado quando falava numa organização beneficente em Chautauqua, cidade pequena no estado de Nova York. Rushdie foi esfaqueado inúmeras vezes, na cabeça, no pescoço e no abdômen – e perdeu um dos olhos.
O escritor recebe ameaças de morte pelo menos desde os anos 1980. Ele é perseguido por autoridades iranianas que o acusam de blasfêmia pela publicação de Os versos satânicos, em 1988. O romance, uma peça lírica de fantasia, foi considerado pelo líder iraniano à época como ofensiva à fé islâmica.
“É óbvio, é uma lembrança muito forte”, disse Rushdie nesta sexta em Frankfurt. “Mas a temperatura havia sim baixado, foi até surpreendente (o ataque em 2022). Estou feliz de pelo menos estar aqui para dizer isso. Passou perto… tive muita sorte com os médicos que me trataram. Foram oito horas e meia de cirurgia num hospital na Pensilvânia. Eu nunca esqueci do fatwa. Então lamento o que aconteceu, mas tenho sorte de estar aqui”.
“É fácil ter um senso trágico da vida, porque o mundo não está muito bem”, refletiu. “Mas sempre achei que eu fosse otimista até demais sobre o mundo. No fim, escrever é um tipo de otimismo, porque você espera que alguém vai ler, no futuro”.
No Brasil
Recentemente, a Companhia das Letras publicou Cidade da vitória (com tradução de Paulo Henriques Britto), o primeiro romance do escritor lançado após o ataque (mas escrito antes). O livro se passa no século 13 indiano, onde uma mulher com poderes concedidos por uma deusa vive por mais de 200 anos e cria uma cidade a partir de um punhado de sementes. O escritor então usa sua imaginação para compor uma sociedade inventada, mas cujos temas humanos e políticos encontram verdadeira aderência na vida real.