Três Perguntas do PN para João Cezar de Castro Rocha
PublishNews, Guilherme Sobota, 25/07/2023
Professor e crítico literário lança 'Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico' (Autêntica) em São Paulo e em Belo Horizonte

Uma tradição da crítica literária brasileira a aproxima com vigor da discussão social e da história política do Brasil há praticamente 100 anos. Nos últimos 10, um nome salta quando se pensa em crítica e em política: João Cezar de Castro Rocha. Professor de literatura comparada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), autor de 14 livros e organizador de mais de 30 títulos, além professor e pesquisador visitante em várias instituições (como a Hunan Normal University, Princeton University, entre outras), Castro Rocha se tornou um ativo militante contra a extrema-direita, dedicado a tentar explicar o fenômeno transnacional que deixou suas marcas no Brasil.

O esforço mais recente neste sentido é Bolsonarismo: Da guerra cultural ao terrorismo doméstico (Autêntica), que busca discutir os impasses contemporâneos a partir da interpretação dos fatos e dos discursos. Primeiro volume de uma trilogia, o livro reúne entrevistas e artigos para a imprensa, em versões editadas e revistas, além de textos inéditos. O autor lança o livro em dois eventos em São Paulo (nesta terça, 25, na Livraria da Vila da Fradique, e na quarta, 26, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc; já na quinta-feira, ele participa do Sempre um Papo, em Belo Horizonte).

João Cezar de Castro Rocha respondeu a três perguntas do PublishNews:

PublishNews – “A guerra cultural é uma matriz de produção em série de narrativas”, você diz na introdução do livro. Você chegou a identificar semelhanças (ou ao contrário, disparidades) entre as narrativas criadas pelo bolsonarismo e narrativas ficcionais? Penso em estruturas, personagens, narradores – elementos normalmente literários.

João Cezar de Castro Rocha – Excelente tema! No fundo, há uma incompatibilidade irreconciliável entre a narrativa ficcional e a narrativa da guerra cultural da extrema direita. Entender essa diferença é o passo indispensável para driblar os efeitos perversos da retórica do ódio.

Vamos lá: a narrativa ficcional sempre opera o efeito de alargamento de horizontes. Ler um conto, uma novela ou um romance nos leva a ver o mundo com olhos, por assim dizer, “emprestados”. Isto é, o pacto ficcional implica, ainda que não de forma consciente, o exercício do projeto do jovem Arthur Rimbaud, “Eu é um outro”. A agramaticalidade da frase corresponde à abertura para outros mundos possíveis, outras formas possíveis de narrar. O ato de leitura, nesse sentido, é uma radical operação antropológica de descentramento, vale dizer, de acolhimento do outro.

Já a narrativa da guerra cultural da extrema direita tem um modo de operação diametralmente oposto, pois seu objetivo é confirmar o que já se sabia, num narcisismo cognitivo tão exacerbado que beira a psicopatia. O outro não tem vez, muito menos voz, e qualquer brecha no muro que se levanta contra a alteridade é vista como ameaça que deve ser imediatamente suprimida. Daí, a redundância e a reiteração serem seus artifícios quase exclusivos. Pior: esse modelo narrativo realiza-se plenamente na retórica do ódio, que reduz o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.

Você mesmo menciona a falta de verossimilhança que houve em atitudes e ações do ex-presidente brasileiro durante a pandemia, por exemplo. Puxando para as análises dos realismos na literatura, a realidade se esgotou? Ou ainda, a literatura, nesse cenário, foi impossibilitada de dar conta do real?

Diria antes o contrário, evocando o conceito de “verdade factual” de Hannah Arendt. O princípio de realidade é o que pode derrotar a extrema direita. Mas, ainda mais importante: o bolsonarismo não será superado apenas no campo da política, porém no plano mais generoso da pólis. É preciso, por exemplo, que a democracia deixe de ser um conceito formal – votação a cada 2 ou 4 anos – para converter-se em realidade concreta, palpável, presente no dia a dia da população.

Mas entendo a direção da pergunta: a extrema direita triunfou porque virou de ponta cabeça certas noções e ações. Por exemplo: nas décadas de 1970 e de 1980 questionou-se a ideia de “grande narrativa”, que em tese continha uma “verdade absoluta”. Tratava-se de uma estratégia progressista que buscava ampliar o leque de discursos e de visões de mundo. O que fez a extrema direita? Radicalizou a ideia, invertendo a premissa: agora nada é “verdade”, tudo é “narrativa”, logo não há “fake news”, apenas “pontos de vista”. Daí a manipulação nas redes sociais para a imposição de um projeto político autoritário. Há uma assustadora homologia entre esse impulso e a dinâmica das plataformas digitais, pois a disputa de narrativas é sempre rumorosa e violenta, exatamente o que é preciso para ganhar visibilidade numa acirradíssima economia da atenção.

Permita-me, ainda assim, ser irresponsavelmente otimista: o ato de leitura literária é hoje mais importante e decisivo do que em qualquer outro período histórico. Ele inaugura uma forma muito pessoal de relacionamento com o tempo, que deixa de ser maquínico ou algorítmico e retorna à precariedade propriamente humana, marcada pela incerteza e, por isso mesmo, pela alegria das descobertas.

A crítica literária da metade do século 20, em nomes como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, possuía um forte elemento social, que foi se diluindo conforme as especializações em Teoria Literária, por exemplo, foram crescendo (sem nenhum juízo moral nessa constatação). Como você considera que esse seu trabalho recente se relaciona com a tradição mais sociológica da crítica literária brasileira?

Prefiro pensar – ou talvez me enganar imaginando – que tenho desenvolvido na última década uma forma própria de leitura de textos literários. Trata-se da descrição densa, tal como proposta pelo antropólogo Clifford Geertz, a partir de reflexão do filósofo Gilbert Ryle. No meu caso, propus uma torção particular ao método de Geertz; um livro de 2013, Machado de Assis: por uma poética da emulação, foi o primeiro resultado concreto do meu entendimento da descrição densa. No campo dos estudos literários, creio, a forma de leitura que pratico é uma novidade – o que não quer dizer nada, pode ser antes um erro continuado no qual insisto por teimosia ou falta de sensibilidade.

No entanto, no trabalho que faço de tentativa de decifrar as estratégias discursivas da extrema direita transnacional, não somente de sua variante bolsonarista, lancei mão da ideia de “etnografia textual”, que permite o necessário distanciamento para caracterizar a lógica desse fenômeno. Aqui, me parece que me aproximo da tradição de Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda. Poderia mesmo dizer que conscientemente busco recolocar em cena a posição de Antonio Candido em 1944, nos estertores da Ditadura do Estado Novo: “Cada um com suas armas. A nossa é essa: esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias.” É o que tento fazer com este novo livro, Bolsonarismo: da guerra cultura ao terrorismo doméstico, o primeiro de uma trilogia. Os próximos tentarão decifrar a retórica do ódio e a dissonância cognitiva coletiva.

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Agenda de lançamentos e sessões de autógrafos:

SÃO PAULO

  • Terça-feira, 25 de julho, às 19h:

Debate: João Cezar de Castro Rocha, Eugênio Bucci e Isabela Kalil, seguido de sessão de autógrafos.
Local: Livraria da Vila: Rua Fradique Coutinho - Vila Madalena

  • Quarta-feira, 26 de julho, às 19h30:

Ciclo de debates filosóficos Mutações - Corpo-Espírito-Mundo: Passagens
Tema da palestra: Kasparov e a Máquina
Com João Cezar de Castro Rocha e mediação de Welington Andrade
Após a apresentação, o autor autografará o livro
Evento gratuito, mediante inscrições. Clique aqui para mais informações.
Local: Centro de Pesquisa e Formação do Sesc: Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4° andar, Bela Vista

BELO HORIZONTE

  • Quinta-feira, 27 de julho, às 19h30:

Ciclo de debates filosóficos Mutações - Corpo-Espírito-Mundo: Passagens no Sempre um Papo (em parceria com Artepensamento)
Tema da palestra: Kasparov e a Máquina
Após a apresentação, o autor autografará o livro
Evento gratuito, mediante retirada de ingressos no site do Sympla.
Local: Teatro José Aparecido de Oliveira (Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais – Praça da Liberdade)

[25/07/2023 08:50:00]