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A celebração da narração... humana
PublishNews, André Calgaro*, 06/04/2023
André Calgaro acompanhou a cerimônia do Audie Awards, o ‘Oscar’ da indústria americana de audiolivros, e analisa os vencedores e as tendências do mercado de audiolivros

Quando o mundo inteiro se reveza entre o temor e o encantamento, ao observar a veloz escalada de desenvolvimento das ferramentas de inteligência artificial, a indústria de audiolivros não se mostra indiferente. A oferta de tecnologia de vozes sintetizadas já é realidade há um certo tempo, e crescem as empresas dedicadas a esse serviço (muito embora a qualidade ainda seja bem limitada, em se tratando das poucas melhores companhias; e ruim, ao falarmos da maior parte delas). Logo, não é exatamente uma surpresa constatar que os narradores profissionais de audiolivros acompanhem essa, digamos, primavera das IAs com patente receio.

Então, uma cerimônia como a dos Audies Awards, cuja edição de 2023 ocorreu no último dia 28 de março, em Nova Iorque, e que premia as melhores produções de audiolivros em inglês (e em espanhol, apesar de contar com só uma categoria), serve também para celebrar a narração... humana.

Mais uma vez, venho analisar os Audies com base não só no estudo constante do mercado global de audiolivros e de áudio falado em geral, mas, também, à luz das experiências vivenciadas com minha empresa, a Narratix, que produz audiolivros em diversos idiomas desde 2018, para editoras, plataformas e geradores de conteúdo de várias partes do mundo.

O mercado dos EUA

Embora já tenhamos outras premiações em desenvolvimento, como os Storytel Awards – com início em 2015 pela plataforma sueca de mesmo nome, e que hoje abarca produções dos países nórdicos, Holanda e Bélgica – contando esse ano inclusive com um recorde de votações, o exuberante mercado norte-americano de audiolivros (assim como no cinema e na música), representado pelos Audie Awards, ainda é o que mais atrai olhares e ouvidos.

Não à toa, quase todos os grandes players deste segmento o observam com desejo. A distribuidora alemã de livros digitais Bookwire anunciou recentemente sua entrada por lá. Ano passado, o Spotify anunciou seu reverberante mergulho no segmento dos audiolivros, começando exatamente pelos Estados Unidos (e 300 mil títulos ofertados de início, a tiracolo). Antes, em 2021, a própria Storytel deu passos mais fortes rumo aos EUA com a aquisição do serviço Audiobooks.com (embora ainda sem resultados visíveis). Isso, sem nem citarmos as super influentes e relevantes empresas nativas, como a poderosa plataforma Audible, e outros players importantíssimos, como a Scribd, a RBmedia, etc.

Os Audies 2023

Falando de volume de premiações, o enorme grupo Penguin Random House, com fortíssima estratégia dedicada ao áudio (em inglês e em espanhol), foi o grande vencedor deste ano, com cinco prêmios das 26 categorias, seguido de perto pela Audible com quatro. A PRH também é um dos grupos mais vitoriosos da história dos Audie Awards, junto com a própria Audible, HarperAudio e Simon & Schuster Audio, Hachette Audio e Macmillan Audio.

Entre os premiados, dois dados curiosos: quase um quarto deles foi de obras narradas pelos próprios autores (inclusive a que conquistou o mais relevante prêmio, de melhor audiolivro do ano); e 35%, foram de obras que contavam com mais de um narrador (seja uma dupla, ou um elenco completo).

Tivemos uma aparição interessante, porém, entre os indicados. A Storytel figurou na categoria audiodrama, com sua adaptação dramatizada e recheada de efeitos sonoros, do clássico 1984. Não é mesmo comum uma empresa não-americana figurar entre os indicados.

Agora, vamos examinar os vencedores das principais categorias.

Audiolivro do Ano

Quase previsível que Finding Me (Em busca de mim / BestSeller), narrado e escrito por Viola Davis, e publicado pela HarperAudio vencesse a mais importante categoria. Viola, com sua obra, já havia alcançado o histórico status de EGOT, por ter abocanhado o Emmy, Grammy, Oscar e Tony.

Motivos não faltam. Finding Me é uma combinação arrebatadora de uma história poderosa, pungente e bela, com uma narração emocional e dinâmica, junto à autenticidade de ter a própria autora da história a narrando. Considerando ainda que a autora é uma espetacular atriz, ouvir este audiolivro é uma experiência fascinante, que somente na Audible recebeu mais de 32 mil avaliações.

Davis também venceu, como não poderia deixar de ser, o Audie na categoria “Narração Pelo Autor ou Autores”.

Melhor narradora

Rosamund Pike / Criador: Jan Thijs 2020 | © Jan Thijs 2021
Rosamund Pike / Criador: Jan Thijs 2020 | © Jan Thijs 2021
Para The wheel of time (A roda do tempo), primeiro volume da série de fantasia (publicada no Brasil pela Intrínseca), The eye of the world (O olho do mundo), de Robert Jordan, prepare-se para uma jornada de 33 horas de áudio. Uma viagem auditiva, porém, conduzida com excepcional maestria pela atriz Rosamund Pike, que também estrela a série de mesmo nome da Prime Video. Com seu sotaque britânico (que por alguma razão sempre funciona muito bem com títulos de ficção fantasiosa), a narração de Pike, vencedora na categoria “Melhor Narradora”, é bastante imersiva, seja pela qualidade carregada de naturalidade nos diálogos (algo dificílimo de se fazer ao narrar) ou pelo tom instigante sem soar intenso demais, já que estamos falando de um audiolivro extenso.

Importante pontuar que esta não é a primeira versão em áudio desse título. Kate Reading e Michael Kramer já haviam dado voz à série anos antes, contudo, em um formato diferente. Ambos narradores se revezaram em capítulos, dependendo de quem os protagonizava. De modo que é necessário que o ouvinte se habitue, por exemplo, a um mesmo personagem narrado por duas vozes e características de interpretação diferentes, algo usual em audiolivros que adotam essa abordagem de produção.

Melhor narrador

Seth Numrich
Seth Numrich
Stephen King não é um novato nos audiolivros. Suas obras já venceram Audies, e ele mesmo se aventurou na narração. Em uma entrevista ao site AudioFile, disse que “a voz humana sempre acrescenta uma dimensão à boa escrita. É possível ter uma experiência emocional muito mais intensa ouvindo uma narração de literatura do que lendo para si mesmo”. Em Fairy Tale (Conto de fadas / Suma), da Simon & Schuster Audio, embora King tenha uma participação, o narrador principal é Seth Numrich, que em 2022 já havia vencido um Audie na categoria “Mistério” (também narrando uma obra de Stephen King) e dessa vez levou como “Melhor Narrador”.

Nessa produção, Numrich interpreta um garoto de 17 anos, mesmo ele pessoalmente tendo mais de 30 anos. Esse tipo de situação demanda uma habilidade narrativa especial, já que há o constante risco de o narrador errar a abordagem ao se aproximar de uma faixa etária diferente, seja empregando uma interpretação e/ou timbre caricatos.

Robôs Narradores x Narradores Robôs

Retomando ao nosso mote inicial, da perplexidade e assombro diante das narrações sintetizadas por parte de muitos artistas de voz, e analisando os vencedores das principais categorias, chegamos a uma reflexão. Nenhuma tecnologia possibilita hoje que escutemos um narrador se debruçar sobre suas próprias memórias, como Viola Davis, e arrancar as vísceras de suas histórias pela força e emoção da sua própria voz, com todos os temperos conscientes e inconscientes. Não é conhecida nenhuma ferramenta que permita a criação de um leque extenso de vozes, timbres e características interpretativas feito por uma mesma pessoa, como Rosamund Pike o fez. Nem se sabe de algum aplicativo que possa gerar uma narração abarrotada de naturalidade, nuances etárias e intimidade, como Seth Numrich nos mostrou.

Certo é que a tecnologia de IA no mercado de voz de fato veio para ficar, e isso pode ajudar muitas histórias a saírem do papel e das telas, e também é real que os narradores que entregam um trabalho insosso ou robótico serão, sim, ameaçados pelos verdadeiros robôs. Mas, a narração humana em estado de arte, em sua complexidade multidimensional, polinizando emoções com base em técnicas, e também amplificada pelas próprias histórias pessoais de cada narrador, não há de perecer.


* André Calgaro, empreendedor e pesquisador do universo do áudio digital, é fundador da Narratix, uma empresa especializada na produção de audiolivros em vários idiomas, que colabora com companhias nacionais e estrangeiras, entre plataformas, grupos editoriais e instituições privadas. Seu contato é andre.calgaro@narratix.com.br.

[06/04/2023 10:00:00]
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