‘O governo tem fracionado os pagamentos e isso preocupa’, alerta presidente da Abrelivros
PublishNews, Leonardo Neto, 30/03/2020
Em entrevista ao PublishNews, Ângelo Xavier comenta como o setor de livros educacionais tem lidado com a crise

O PublishNews tem ouvido diversos setores da economia do livro para entender quais os impactos da pandemia de covid-19 nos seus respectivos negócios. Já ouvimos editores de livros gerais, livreiros e organizadores de eventos. Agora, conversamos com Ângelo Xavier, diretor geral de Educação do Grupo Santillana no Brasil e presidente da Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros). Na conversa, ele fala sobre como o setor se preparou para dar respostas imediatas às recomendações de isolamento social; do impacto da pandemia no setor e ainda da reação com o governo federal, o maior comprador de livros do país. Ele revelou que, em meio a essa crise, o governo tem “fracionado os pagamentos” e que isso é muito preocupante.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

PublishNews - A Moderna faz parte de um grupo espanhol. Na Espanha, a epidemia chegou antes do que aqui. Os procedimentos adotados lá para proteção de suas equipes foram replicados aqui?

Ângelo Xavier - De fato, na Espanha a crise começou antes e, por lá, está muito séria mesmo. Mas acho que na Moderna tomamos as ações até um pouco mais cedo. No início da segunda semana de março começamos a analisar os possíveis caminhos e tomar as primeiras decisões. Decidimos cancelar uma convenção comercial que começaria no dia 16, com cerca de 450 pessoas da área comercial. No dia 12, decidimos enviar para home office os colaboradores do chamado “grupo de risco”, entre eles as mulheres grávidas, pessoas com mais de 60 anos, portadores de alguma doença e com baixa imunidade. Até o dia 17, já conseguimos enviar para casa todos os colaboradores da Santillana na matriz, em São Paulo, e nas filiais. São mais de 1.100 pessoas.

Em algumas áreas, a adaptação foi mais rápida, até pela característica do trabalho, por exemplo os editores. Outras áreas demandaram ajustes maiores para a continuidade dos trabalhos com a maior segurança possível, porque entendemos que a empresa não pode parar.

PN - Agora olhando para o mais amplo, como o setor de livros didáticos respondeu a essas orientações?

AX - Pela informação que temos de outras editoras, todos seguiram no mesmo caminho, optando pelo trabalho remoto. Acho que a reação foi muito rápida, com entendimento geral de que o distanciamento social é a melhor decisão para evitar a proliferação do vírus.

PN - Qual o impacto dessa crise no setor de livros didáticos?

AX - Pelo que estamos vivendo nesses dias, o impacto está sendo grande. As vendas despencaram ou estão paralisadas. Há dificuldades no recebimento dos produtos já vendidos e, claro, os compromissos com fornecedores que também precisam receber. A situação atinge toda a cadeia do livro, não só o segmento das educativas. O setor está sendo fortemente impactado, desde as papeleiras, gráficas, editoras, livrarias e autores. É uma situação nova e tensa.

Todos somos fornecedores e somos clientes!

PN - Você tem mais de 30 anos de estrada só na Moderna, né? Já presenciou uma crise dessa natureza?

AX - Já passei por várias situações bem complicadas e talvez a única que me ocorre com ligeira similaridade foi quando Collor assumiu o governo e houve o confisco do dinheiro de todos, pessoas físicas e jurídicas. Naquela ocasião, todos ficamos sem condições de fazer quase nada. Lembro que na época recebi um telefonema do meu chefe orientando para não sair de casa para trabalhar porque a empresa não tinha dinheiro. Naquele episódio, o problema era o dinheiro, mas agora o problema é a vida das pessoas.

PN - O setor de livros didáticos é um segmento da indústria do livro que tem uma relação muito próxima com as compras estatais. É um setor fortemente impactado pelos humores governamentais, vamos dizer assim... Como está a relação com o governo nesse momento?

AX - Como presidente da Abrelivros, estou buscando manter contato com as equipes do MEC, especialmente com a Secretaria de Educação Básica, que é responsável pelos editais e pela avaliação dos livros, e com o FNDE, que é responsável pela execução e gestão dos programas.

Também estamos acionando outros órgãos do governo. Uma de nossas principais preocupações é com a continuidade dos programas. A cadeia do livro precisa que os programas tenham continuidade e que os pedidos de reposição dos programas sejam liberados para as editoras.

É fundamental que o governo efetue os pagamentos de débitos com as editoras nas datas corretas. Aqui temos enfrentado dificuldade porque, por questões de gestão orçamentária, o governo tem fracionado os pagamentos e isso preocupa.

Também estamos atentos às compras via licitação por parte de prefeituras e estados. Este já seria um ano que teríamos um movimento menor, por conta das eleições municipais que interrompem as licitações, e agora, com o covid-19, pode se complicar ainda mais.

PN - Como a Abrelivros tem acompanhado a tramitação da PEC do Pacto Federativo, que quer descentralizar recursos e que a gente internamente aqui no PublishNews costuma chamar de PEC do fim do PNLD, uma vez que quer descentralizar inclusive os recursos do Salário Educação, de onde vem o dinheiro para manter o programa nacional de livros didáticos?

AX - Estamos acompanhando com preocupação e trabalhando para que essa parte da PEC, que entre outros pontos também trata da descentralização dos programas do livro, não prospere. Um projeto de lei com as mesmas características foi proposto pelo senador Izalci Lucas em novembro do ano passado. A Abrelivros participou de uma audiência pública na qual o projeto foi debatido e acabou sendo retirado quando o senador entendeu o modelo e abrangência dos programas.

Em nosso entendimento, esse programa só é possível porque ele tem características próprias. Tem etapas centralizadas e descentralizadas. Centraliza etapas importantes, caso do edital onde o governo faz a “encomenda” do material que julga ser o mais adequado para as redes. A partir daí, as editoras se inscrevem onde acham que têm ofertas competentes. A etapa de avaliação também é centralizada e, desta maneira, consegue estabelecer um padrão de conteúdo.

A descentralização vem na democrática escolha dos livros pelas escolas e redes de todo o país. Eles que decidem qual será o livro mais adequado às suas realidades e projetos pedagógicos.

O programa volta a centralizar na etapa de negociação e distribuição dos livros, o que permite que o contribuinte receba todos os livros no início das aulas e o governo consiga pagar preços muito menores pela larga escala de impressão, coisa que não vai ocorrer se todos os municípios e estados tiverem que executar o programa de maneira descentralizada.

PN - Quando esse período de isolamento acabar, qual vai ser a primeira coisa que você vai querer fazer, Ângelo?

AX - Bem, depois dessa experiência de afastamento social, acho que quero caminhar pela avenida Paulista em um domingo, com aquele movimento, diversidade e calor humano, e depois me sentar em um café, de preferência ao ar livre, para tomar um belo café espresso de máquina. Já estou ficando enjoado das cápsulas...

[30/03/2020 09:00:00]