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Biografias de três mulheres muito à frente do seu tempo
PublishNews, Monica Ramalho, 08/10/2025
Carmen Miranda, Jane Catulle Mendès e Zaquia Jorge tiveram as suas vidas passadas a limpo por Ruy Castro, Rafael Sento Sé e Marcelo Moutinho

Rafael Sento Sé, Ruy Castro e Marcelo Moutinho © Monica Ramalho e Chico Cerchiaro (foto do Ruy)
Rafael Sento Sé, Ruy Castro e Marcelo Moutinho © Monica Ramalho e Chico Cerchiaro (foto do Ruy)
O que une as celebridades Jane Catulle Mendès (1867-1955), Carmen Miranda (1909-1955) e Zaquia Jorge (1924-1957), além de serem notáveis no fazer artístico, muito à frente do seu tempo, e biografadas por três jornalistas? “O Rio nunca foi rural, provinciano. Em termos de Brasil, sempre foi cosmopolita. Cenário ideal para mulheres como Jane, Carmen e Zaquia”, responde, prontamente, Ruy Castro, autor de Carmen: Uma biografia (Companhia das Letras), que ganhou nova edição há semanas, vinte anos depois do seu lançamento - a imprensa só falou disso na época. O livro descortina vida e obra da cantora portuguesa que viveu no Rio de Janeiro entre 1910 e 1939, até ser convidada para atuar em Hollywood.

Jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ruy confessou que está curiosíssimo para ler sobre as descobertas que Rafael Sento Sé fez das andanças da poeta francesa Jane pelos trópicos e admira a história de Zaquia, tão bem contada por Marcelo Moutinho. “Foram ícones não apenas pelos seus talentos, mas por terem se estabelecido como uma inspiração para outras mulheres. No caso da madame Catulle Mendès, o sucesso trouxe uma autonomia impensável para uma mulher na primeira década do século XX", enfatiza Rafael, que está prestes a colocar no mundo o seu A poeta da Cidade Maravilhosa (Autêntica), após treze anos de pesquisas que o levaram até a vasculhar acervos de bibliotecas européias.

Jane veio falar em conferências e turistar no Rio em 1911, após perder o segundo marido, o poeta simbolista Abraham Catulle Mendès (1841-1909), na companhia de uma única assistente, e voltou para casa meses depois, com 33 poemas dedicados à urbe carioca na bagagem. “Ela expressava em seus poemas desejos e anseios de uma forma muito livre, sem se preocupar com as amarras sociais", pontua Rafael sobre a sua personagem, divorciada do primeiro companheiro. Marcelo biografou uma vedete, o que diz absolutamente tudo! “Estamos falando da então capital do país, de uma cidade que concentrava grande parte dos principais equipamentos culturais brasileiros e vivia uma efervescência que talvez não vá mais ser vista em lugar algum. Seria impossível contar a trajetória dessas três mulheres sem a conjuntura dessa cidade em ebulição”, contextualiza.

O jornalista escreveu Estrela de Madureira: A trajetória da vedete Zaquia Jorge, por quem toda a cidade chorou (Record, 2024), cujo título rememora o samba que foi feito em sua homenagem, quando morreu afogada, num acidente na Praia da Barra. Ele conta que trabalhou com dois vieses, conjugando a trajetória individual da dançarina com os fatos que marcaram os círculos que ela frequentou. “O teatro de revista, com a cena da Praça Tiradentes e, depois, dos teatros de bolso da Zona Sul; as popularíssimas chanchadas; o campo da música popular e, finalmente, o universo sociocultural do subúrbio, tão pouco presente na nossa historiografia. Por intermédio da história de Zaquia, tento contar um pouco da história da cidade e do país, em um momento de grandes transformações", enumera Marcelo.

Apesar de terem existido há bastante tempo, as três personagens permanecem incrivelmente atuais. Para Ruy, “a independência, a lucidez e a coragem, características de Carmen, que continuam a ser um desafio para muitas mulheres de hoje. Imagine então há 100 anos! Carmen devia ser reverenciada pelas feministas brasileiras, mas eu me pergunto quantas delas sabem de sua vida", instiga e indaga o imortal. Ele lembra que a intérprete de Tico tico no fubá, sucesso de Ary Barroso, era católica fervorosa e, por isso, passou a vida casada com um homem horrível porque os católicos não se divorciavam. Ruy acredita que esse tenha sido o seu “único passo errado na vida".

Zaquia e Jane terminaram os seus casamentos

Aos 22 anos, Zaquia pediu o desquite - 31 anos antes de o divórcio ser legalizado - e voltou ao seu sobrenome de solteira quando decidiu ser artista e o marido foi contra. “A guarda do filho Carlos Alberto, com apenas dois anos, ficou com o pai, condição para que ele assinasse os papéis. Mais tarde, já firmada como vedete, ousou ao chegar no então conservador subúrbio vestindo calça comprida e com tamancos nos pés. O figurinista Mário Bastos, que trabalhou com ela no Teatro Madureira, dizia que Zaquia foi a primeira mulher a usar calça nessa região da cidade", reconstitui o biógrafo, nascido e criado no mesmo bairro imortalizado em tantos sambas.

Como em toda boa narrativa, a passagem de Jane pela Terra foi marcada por grandes conquistas e, para balancear, algumas tragédias pessoais, que se apresentavam como pontos de virada na trama. “Os conflitos estavam postos com muita nitidez. Ela teve três filhos num primeiro relacionamento, mas o marido era um turrão que a tratava mal e ela decidiu se divorciar. A pesquisa me revelou quase sempre um material rico. Encontrei, por exemplo, a carta que ela escreveu ao primeiro marido expressando as razões para ela pedir o divórcio. E a gente está falando de 1895, tinha somente onze anos que o divórcio fora legalizado na França", revela Rafael.

Toda biografia precisa decidir como rebobinar a vida de alguém: transformar em poesia, destacando os grandes feitos, ou apresentar um relato da vida ordinária, com gestos cotidianos. Ruy Castro escreve tão bem, mas tão bem, que é difícil de explicar em palavras. De todo modo, equilibrar as narrativas “foi fácil” para ele, pois “até a vida ordinária de Carmen foi extraordinária - e esse não é um jogo de palavras. Carmen nunca se importou com as caricaturas e simplificações. Ela própria inventou a sua caricatura. Mas, como biógrafo, descobri que, por trás daquilo, havia uma mulher séria, independente, que quase sempre sabia o que fazia e não tinha medo de nada. Quando foi para Nova York em 1939, por exemplo, Carmen sabia que ia vencer. Só não imaginava que fosse tão rápido”. Isso lembra alguma cantora da cena de hoje? Lembra, sim. “Temos uma que vê Carmen como modelo e, à sua maneira, repete a trajetória dela: Anitta”, atesta o imortal.

Para trazer Zaquia de volta à mesa do bar, Marcelo investiu no conceito de micro-história, uma abordagem que coloca a lupa nos personagens com a finalidade de compreender dinâmicas sociais mais abrangentes. “Desde o começo da pesquisa, até pela evidente falta de fontes com relação à vida pessoal da Zaquia, queria juntar os feitos da minha biografada no campo profissional, como o trabalho nos palcos e no cinema, e depois a criação de um teatro no subúrbio, com relatos mais gerais", explica. O autor faz uma viagem à Madureira de 1950 para falar dos grandes cinemas de rua, das escolas de samba e da potência do comércio, que colocava o bairro em vantagem dentro do subúrbio. “Assim, a história de Zaquia se funde à história dos costumes e da cultura do Rio de Janeiro ao longo de boa parte do século passado, num jogo de espelhamentos”, situa.

Jane Catulle Mendès criou e disseminou o epíteto pelo qual o Rio de Janeiro ficou conhecido mundo afora: Cidade Maravilhosa. De certo modo, ela é quase da família de Rafael - os seus filhos, de seis e quatorze anos, cresceram com o nome de Jane na boca, entre uma mordida no brioche e um gole no achocolatado. O crédito de Jane foi assunto de outra pauta no PublishNews (leia aqui!) essa semana. “Diria que ela consagrou essa expressão, mas o João do Rio e o Olavo Bilac atribuem a invenção a ela, então, quem somos nós para contrariá-los, não é? Além de poesia, ela escreveu também contos e críticas teatrais e ela escrevia com grande liberdade", enfatiza.

Liberdade que deve puxar o leitor pela gola e dar um sacode, acredita Rafael Sento Sé. “E, além da liberdade, Jane costumava atribuir a si própria um certo dom sensitivo. Era uma característica para a qual eu não tinha dado muita bola no começo, mas fui me deparando com ela ao longo dos processos de pesquisa e escrita do livro e em diversos momentos me peguei falando: isso não é possível!", conta o biógrafo. Possível mesmo é você ler, tão logo, esses livraços maravilhosos.

A nova edição de Carmen: Uma biografia e Estrela de Madureira: A trajetória da vedete Zaquia Jorge, por quem toda a cidade chorou estão à venda e A poeta da Cidade Maravilhosa será lançado no dia 1º de novembro, às 17h, na Livraria da Travessa de Ipanema, no Rio de Janeiro, mas já entrou em pré-venda na Amazon. Compre antes aqui!

[08/10/2025 09:38:48]
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