Uso de inteligência artificial para traduções no mercado editorial ainda não é regulamentado
PublishNews, Beatriz Sardinha, 21/03/2024
O PublishNews falou com agentes literários, editoras e tradutoras para falar sobre o uso de IA no processo de tradução

Uso de inteligência artificial nos processos editorias tem movimentado discussões do mercado | © Freepik
Uso de inteligência artificial nos processos editorias tem movimentado discussões do mercado | © Freepik
O uso de inteligência artificial encontra-se num terreno nebuloso no que diz respeito a regulações, sanções e restrições de uso, em diferentes setores. No mercado editorial, um dos campos em que a ferramenta pode ser utilizada é na tradução. Ao consultar editoras, agentes literárias e tradutoras, nota-se que as principais preocupações com o uso de IA no processo de tradução passam por muitas variáveis. Relações estabelecidas entre editor, tradutor e autor, a confidencialidade e a competitividade do mercado são alguns dos fatores de maior relevância dentro da discussão.

A utilização da inteligência artificial no cotidiano do mercado editorial tem aparecido com maior frequência dentro de eventos e espaços de discussão. Na semana passada (13), na Feira do Livro de Londres, o painel ‘AI and Literary Translation’ (Inteligência artificial e tradução literária) foi um dos mais concorridos da Feira.

De acordo com o Publishers Weekly, Duncan Large, diretor executivo do Centro Britânico de Tradução Literária (British Centre for Literacy Translation), falou sobre um sentimento de negação que pairava a categoria até pouco tempo. A editora brasileira Karine Pansa, presidente da International Publishers Association (IPA), participou de um dos principais painéis da Feira, ainda no dia 12, e também afirmou que ainda "não entendemos as consequências da IA sobre os direitos autorais".

Ela destacou que conteúdos com direitos autorais estão sendo utilizados sem permissão e licenciamento por ferramentas de inteligência artificial. Questões relacionadas à liberdade de publicação e movimentações contra as diferentes censuras de livros ao redor do mundo também foram abordadas, segundo o PW.

O uso de IA também será discutido por aqui no primeiro Summit IA no Mercado Editorial, no dia 15 de abril, promovido pela ABDR, pela Saber Educação e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).

Conteúdo, confiança e inteligência artificial

Em qualquer debate e discussão acerca do uso de inteligência artificial, um aspecto central é eficiência com que um algoritmo seria capaz de reproduzir um trabalho artístico. No caso da tradução, esse debate se coloca, por exemplo, se o ChatGPT ou outra ferramenta poderia traduzir Guimarães Rosa sem que houvesse prejuízos de sentido do português brasileiro para outra língua.

Para além dos erros grosseiros cometidos pela inteligência artificial, a tradutora Ana Beatriz C. F. Braga Dinucci, indicada pela SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores) a participar desta reportagem, fala sobre a questão artística presente nos livros, e de obras que contenham, por exemplo, narradores e personagens de diferentes perfis, idades e vocabulários interagindo. Em casos como esses, para ela, perde-se muito em conteúdo quando um trecho tem tradução feita por inteligência artificial.

“Temos um conhecimento cultural nosso, e que o ChatGPT não irá entender completamente, ainda que coloquemos uma descrição detalhada na plataforma”, afirma. Ela explica que uma analogia possível seria a diferença entre comer um hambúrguer de uma rede de fast-food, com a sensação de se comer um hambúrguer artesanal.

Ela comenta que às vezes pega trechos em que está trabalhando com suas informações sensíveis alteradas e utiliza a plataforma para ver como a inteligência artificial faria o trabalho. Ela relata que artifícios como ironias, figuras de linguagem e outras sutilezas são perdidas no decorrer do processo. No entanto, Ana Beatriz comenta que, no caso de parágrafos de textos mais simples, é muito possível que haja de fato uma perda de mercado para tradutores, pois se tratam de traduções “menos densas” e sem muita sofisticação.

A agente literária Anna Luiza Cardoso, sócio da Vilas-Boas & Moss, explica que muito do trabalho relacionado ao assunto hoje em dia está em estabelecer uma relação de confiança entre agência e autor. Isso envolve uma relação de validação no material textual do autor e do autor confiar sua obra ao trabalho do agente.

Em conversa com o PN, a Editora Veneta reforçou que não utiliza inteligência artificial em nenhuma etapa do processo editorial, e ressalta a importância das etapas de edição e revisão de textos no momento de perceber “coisas feitas de forma mecânica”. A Veneta também ressalta a relevância da confiança e que, em seu caso, a empresa trabalha com poucos tradutores "de longa data", o que colabora para o estabelecimento de uma relação de confiança e de diálogo.

Confidencialidade dentro do processo editorial

Uma das principais questões que envolvem a tradução e a utilização da ferramenta de inteligência artificial é a confidencialidade. A agente Anna Luiza Cardoso também ressalta a "nebulosidade" do território da inteligência artificial e comenta que, atualmente, nos contratos de tradução, um elemento que respalda a preocupação da utilização de IA é a mesma cláusula referente a plágio.

“O que mais nos cobre, para evitar problemas, é a mesma cláusula que nos protege em relação a plágio. É uma cláusula presente em todos os contratos de edição, em que o autor atesta a originalidade daquele texto, que ele é o responsável por aquela obra. Isso está nos contratos para evitar plágio, e cobre também o uso eventual de inteligência artificial", explica.

Relevância da tradução

Falar sobre a relevância do tradutor para o grande público em meio à ampla disseminação de uma ferramenta de inteligência artificial e a mentalidade do “faça você mesmo” pode ser outro grande desafio. “Você só aparece quando comete um erro enorme”, diz a tradutora Ana Beatriz. Ela acrescenta que uma possibilidade — citada no livro A invisibilidade do tradutor (Editora Unesp), de Lawrence Venuti – seria que o tradutor fizesse um pequeno texto de introdução na obra, ou notas que possam esclarecer potenciais dúvidas no decorrer da obra.

Desafios para inserir a tecnologia dentro do mercado

Alguns dos entrevistados pelo PN, no entanto, ponderam que é inegável se colocar contra a tecnologia. Ana Beatriz menciona que a inteligência artificial pode, sim, promover uma mudança significativa no que diz respeito aos prazos do mercado.

Para o gerente editorial do Grupo Editorial Global, Gustavo Tuna, "cabe ao profissional do texto apropriar-se dos recursos em desenvolvimento de forma a incrementar sua produção conservando, todavia, a dimensão autoral de seu ato criativo”, comenta. Ele também dá o exemplo da ferramenta “localizar”, que, na época do seu lançamento nos editores de texto, foi alvo de críticas, sob o argumento de que reduziria o interesse do público em ler textos maiores. “Muitas ferramentas de IA já estão à disposição de quem trabalha no mercado editorial e certamente novos instrumentos continuarão surgindo", complementa.

Ivana Jinkings, diretora da Boitempo e Boitatá, avalia que o uso controlado e supervisionado pode ser sim útil para “legar mais tempo criativo” para autores, tradutores e revisores. “A tecnologia está ai, não há volta”, comenta, mas reforça a necessidade de uma regulamentação, principalmente diante de movimentos que, segundo ela, são "inusitados" por parte do mercado editorial. "Fico preocupada com a possibilidade de inclusão de categorias de IA nos prêmios literários, por exemplo. Em um momento de tantas incertezas, me parece um enorme risco e uma abertura para aberrações de todo tipo”.

[21/03/2024 10:00:00]