D.R. sobre D.A.: Samba e literatura
PublishNews, Luciana Villas-Boas*, 04/03/2024
Se alguém disser a um americano que a prática no Brasil é as escolas se apropriarem de textos literários sem qualquer pagamento de direitos autorais, o gringo não vai acreditar

Detalhe do desfile da Grande Rio em 2024, inspirado no livro 'Meu destino é ser onça' | © Marco Terranova | Riotur
Detalhe do desfile da Grande Rio em 2024, inspirado no livro 'Meu destino é ser onça' | © Marco Terranova | Riotur
O Carnaval de 2024 consagrou o casamento do samba com a literatura, e não só pelo grande número de enredos baseados em livros – desde os mais comentados Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa para a Grande Rio, e Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves para a Portela, até O testamento da Cigana Esmeralda, cordel de Leandro Gomes de Barros para a Imperatriz Leopoldinense, e na Série Ouro Amoras, de Emicida para a União da Ilha. Sem falar em livros que foram “inspiração” para temas amplos como o romance Tempo de caju, de Socorro Acioli para a Mocidade de Padre Miguel, e A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, sobre os Yanomami, para o Salgueiro.

O relacionamento amoroso entre samba e literatura é antigo, claro, mas há uma diferença na maneira como a literatura entrou na Avenida em 2024. Maneira que, consagrando o matrimônio, curiosamente, ainda não foi debatida pelos eruditos do samba na TV e na mídia em geral.

Deu em casório este ano porque as escolas passaram a beber nas próprias narrativas literárias – prática de adaptação de uma obra a mídia de outra natureza, só comparável ao que há muito tempo fazem o cinema e o teatro, principalmente nos Estados Unidos, desde antes de E o vento levou. Felizmente, o setor audiovisual brasileiro começou a seguir o mesmo caminho nas décadas recentes.

Meu destino é ser onça e Um defeito de cor cristalizaram a novidade, que não tem a ver com a temática identitária comum à maioria dos enredos nos últimos cinco anos (embora à essa altura deva-se lembrar o óbvio: evidentemente, o samba jamais foi estranho à negritude, ao indígena brasileiro e às lutas populares). As duas escolas que capturaram os corações dos amantes dos desfiles da Sapucaí, independentemente de seus feitos na competição – a primeira conquistou o bronze, a segunda saiu vencedora do Estandarte de Ouro, de O Globo, mas no desfile das campeãs no sábado passou em quinto lugar –, Grande Rio e Portela basearam seus enredos em narrativas ficcionais contemporâneas de autores vivos e colaram seus sambas e alegorias às tramas dos dois livros. Isso é praticamente inédito.

Desde a homenagem do Império Serrano a Castro Alves em 1948, as escolas têm andado de mãos dadas com a literatura. Machado de Assis foi tema da Aprendizes da Boca do Mato em 1959 com samba de Martinho da Vila, que então sequer usava esse epíteto; Mangueira saiu de Gonçalves Dias em 1952. Lima Barreto foi tema da Unidos da Tijuca em 1982; Carlos Drummond de Andrade, da Mangueira em 1987; o Império Serrano homenageou Jorge Amado em 1989. Em 2009, Mocidade juntou Machado e Guimarães Rosa num único enredo; e por aí vai. Mas o único momento semelhante ao que se teve este ano foi, em 1975, o enredo da Portela sobre Macunaíma, que ainda não entrara em domínio público, embora já um cânone literário, lançado por Mário de Andrade (1893-1945) em 1928 e adaptado para o cinema em 1969.

Uma coisa é homenagear a figura pública de um escritor com toda sua obra, outra bem diferente é explorar uma narrativa ficcional e a pesquisa desenvolvida para a sua criação por um autor mais ou menos célebre. Este ano, o livro que baseou o enredo da Portela era muito maior que sua autora, também homenageada, claro, mas o que importou foi Um defeito de cor, por sua história e simbologia, há alguns anos bandeira do movimento negro brasileiro. Acabado o carnaval, muita gente sem maior proximidade com a literatura está sabendo do que trata o romance (que lancei pela Editora Record em 2006 e, em 2022, já ultrapassara a casa de 100 mil exemplares vendidos), talvez o tenha comprado ou vá fazê-lo, sem ligar imediatamente a obra a Ana Maria Gonçalves.

Alberto Mussa, que também lancei pela Record com O enigma de Qaf em 2004, sequer desfilou em cima de carro da Grande Rio. Acompanhou o desfile pela lateral das alas com camiseta de diretor da escola. Escritor premiado, com nome consolidado no meio literário, Mussa entrou na avenida pela primeira vez na qualidade de autor da obra em que se baseia o enredo (é lendária sua ligação com as escolas, tem um ensaio histórico sobre o assunto) com um dos livros menos conhecidos de seu acervo, essa maravilhosa ficção mítica dos Tupinambás sobre a origem do mundo, publicada originalmente em 2009.

Se alguém disser a um americano que a prática no Brasil é as escolas se apropriarem de textos literários para basearem seus enredos e sambas sem qualquer pagamento, ou no mínimo um contratinho básico de cessão de direitos autorais mediante parte de uma eventual premiação (D.A., no jargão do meio editorial), o gringo não vai acreditar. Não é “o maior espetáculo da Terra”, envolvendo muitos milhões de reais e altas remunerações para coreógrafos, cenógrafos, figurinistas e outros profissionais?

Os escritores fornecem de graça e bom grado às escolas de samba as tramas literárias que criaram depois de anos de dedicação à pesquisa da linguagem e dos fatos históricos necessários a suas composições. Não estou aqui para vociferar o contrário: que eles devam receber por seus direitos autorais como qualquer profissional chave para o espetáculo. A rigor, ainda não tenho opinião formada. Pode o não-pagamento ao escritor representar um dos últimos aspectos amadorísticos – a ser preservado – de uma arte essencialmente popular, na sua criação e no seu consumo, como é o samba das escolas? Talvez, mas acredito que seja proveitoso debater esse ponto, explicitá-lo.

Considerando que os últimos desfiles têm demonstrado cabalmente a força imagética dos enredos narrativos com começo, desenvolvimento e fim, retirados da arte do romance, a D.R. do samba com a literatura será inevitável. (Me desculpem o uso frequente do conceito de “narrativa”, tão bom, verdadeiro e útil, popularizado a partir da prática psicanalítica, infelizmente conspurcado pelo patoá bolsonarista. É essencial neste artigo.)

No campo da arte, brasileiro é amador para o bem e para o mal. Para o bem porque, entre nós, é comum o artista amante de sua criação, amador porque compreende de maneira quase inata o caráter da produção de arte como doação – à sociedade, ao próximo – no sentido formulado por Lewis Hyde em seu A dádiva: Como o espírito criador transforma o mundo (Civilização Brasileira, 2010). Para o mal porque é comum a hesitação em atribuir valor monetário à obra artística, para o proveito dos empresários da cultura.

Sou do tempo em que ainda faziam parte da indústria editorial, nos meados da década de 90, muitos editores que acreditavam prestar favor ao escritor quando publicavam um livro nacional – sem contrato, sem prestação de contas das vendas, menos ainda pagamento adiantado de direitos autorais, ainda que ele estivesse de olho bem aberto para as compras de exemplares em noites de autógrafo e pelo próprio autor, que distribuía volumes da obra a granel pela sociedade. Justiça seja feita, essa mentalidade começou a mudar já na década de 70 com Alfredo Machado, fundador da Record, que com seu charme e o compromisso de prestações de contas estelares atraiu para sua editora Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e a obra de Graciliano Ramos.

Ainda hoje há editores que tentam se manter em atividade com essa concepção do negócio literário, mas felizmente é um grupo minoritário. O escritor deveria se dar por muito feliz pelo afago no ego – mais que isso, carícia erótica de alta voltagem – que um livro publicado representa, seria a linha de pensamento.

A publicação profissional reconhece a inteligência e o talento do autor. Certamente, o livro publicado tem forte valor simbólico, que potencializa qualquer carreira profissional e precifica por cima palestras e outras contribuições de caráter literário, mas ninguém mais defenderá abertamente que o escritor vá em frente sem pleitear os royalties por direitos autorais que seu trabalho gerou.

A ideia de que não é necessário pagar o autor da obra na qual se baseia um enredo de escola segue essa velha concepção. O desfile seria uma grande homenagem, consagração que popularizará ainda mais o homenageado, indiretamente beneficiando suas obras e agregando valor a suas criações no âmbito para a qual foram compostas originalmente.

Só que não é bem assim que a banda toca; a bateria, melhor dizendo. Primeiro, pela diferença já apontada entre o enredo em torno de uma personalidade e aquele baseado numa história criada por autor conhecido, com originalidade atestada pela Biblioteca Nacional e ISBN. Segundo, porque nem sempre o desfile atribui devido crédito às obras inspiradoras: pode bem acontecer qual o benefício mercantil seja meramente residual. (Como, aliás, ainda se dá no cinema, quando um contrato mal feito não exige destaque para a atribuição de crédito à obra literária, por exemplo, ou quando se altera o título original.)

Desfile da Mocidade também teve inspiração em um livro | © Alex Ferro | Riotur
Desfile da Mocidade também teve inspiração em um livro | © Alex Ferro | Riotur
A publicidade tanto da Grande Rio como da Portela abriu muito espaço para os livros Meu destino é ser onça e Um defeito de cor. No entanto, só fui saber que o enredo da Mocidade é inspirado em Tempo de caju, quando já estava pesquisando para este artigo. Não acredito que o livro de Socorro Acioli tenha vendido um exemplar a mais por causa por desfile.

Contra todas as previsões sobre o fim do romance, a ficção literária ganha poder a cada nova história do noticiário. Até a Inteligência Artificial, limitada em suas criações aos algorítmos do que já consta na rede, confere mais força e prestígio à originalidade da literatura.

No caso de Grande Rio e Portela, a narrativa literária também se impôs e saiu ganhando: o encantamento proporcionado pelas histórias dos livros de Mussa e Ana Maria Gonçalves podem vir a configurar uma tendência de as escolas de samba beberem cada vez mais no romance. Mas aí, se eu fosse advogada da Liesa, não teria dúvida em exigir dos meus clientes contratos de exploração de direito autoral no caso de enredos baseados em obras literárias. O prêmio de uma escola campeã está na ordem de R$ 85 milhões. Não seria surpresa se o autor de um livro que deu origem ao enredo vencedor pleiteasse uma parte. Por isso, a D.R é inevitável.


* Luciana Villas-Boas é agente literária, sócia-fundadora e diretora da LVB & Co

** O texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[04/03/2024 09:30:00]