Três Perguntas do PN para Maria José Silveira, autora de 'Farejador de águas'
PublishNews, Guilherme Sobota, 1º/08/2023
Temas como a relação da humanidade com a natureza e as questões da terra permeiam a história do personagem Minino, garoto órfão criado por uma mulher indígena em Goiás

Maria José Silveira tinha um desafio após o sucesso de Maria Altamira, romance lançado pela Instante em 2020, finalista dos principais prêmios literários, com mais de 40 mil exemplares vendidos. Escritora, editora e tradutora e formada em Comunicação, Antropologia, e Ciências Políticas, a autora goiana empreende no seu projeto literário único tentativas de elaborar o Brasil contemporâneo a partir de leituras atentas do contexto social e cultural.

É a empreitada que ela continua a perseguir no novo romance Farejador de águas (Instante), em que temas como a relação da humanidade com a natureza e as questões da terra permeiam a história do personagem Minino, garoto órfão criado por uma mulher indígena. Ele decide sair de casa e acompanhar a Coluna Prestes nos anos 1920, o que desencadeia a trama. (Entre os dois livros, a escritora ainda lançou Aqui. Neste lugar (Autêntica Contemporânea), uma espécie de distopia macunaímica, escrita anteriormente).

Sobre o novo livro e sobre sua trajetória, Maria José Silveira respondeu a três perguntas do PublishNews.

PublishNews – Recentemente, o Estadão incluiu o seu nome numa matéria que identificava uma "Geração Cerrado". Ao longo da sua carreira, seus livros também passam pela região, e agora com "Farejador de águas" esse processo parece chegar num ápice. O que a literatura faz pela sua identificação com a sua terra natal?

Maria José Silveira – Saí muito jovem de Goiás, morei em outras cidades e em outro país, apaixonei-me por outras paisagens culturais, escolhi a cidade de São Paulo para viver, e me sentia cada vez mais distante da terra onde nasci. O que mudou quando comecei a escrever e percebi como eu continuava profundamente goiana. Imagino que isso não deve ser muito raro em se tratando de escritores que saem de sua terra. E não se trata de saudade, que essas eu só tenho dos meus familiares e amigos. É algo mais inconsciente e inseparável do que sou. A paisagem do cerrado, seus rios, seus tipos humanos e linguagem, sua comida mais típica, até as boiadas na estrada e o som do berrante, fazem parte, para mal ou para bem, do núcleo da pessoa que continuo a ser. E a literatura goiana, tão pouco conhecida mesmo dentro de Goiás, sem dúvida contribuiu bastante para que esse sentimento se enraizasse. Devo dizer, no entanto, que a maior parte dos meus livros não se passa em Goiás. Desde meu primeiro romance, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, minhas paisagens atravessam várias partes do nosso país; tratam de São Paulo, em Paulicéia de mil dentes; do Rio de Janeiro, Colômbia e os Andes, em Com esse ódio e esses amor; de Londres, com Eleanor Marx, filha de Karl; do Peru, passando por outros países da América Latina, até chegar à beira do Xingu, com Maria Altamira; pelo Brasil mitológico em Aqui. Neste Lugar, e por aí vai.

– Com a sua experiência no assunto, como você avalia o estado atual de uma literatura brasileira mais engajada, mais preocupada com abordar diretamente questões sociais e ambientais? Quando você olha para os lados, você vê "parceiros/as" de luta?

Estou entre os que consideram que toda literatura é política, quer você queira, quer não. Mas não vejo a literatura preocupada em abordar diretamente questões sociais e ambientais como engajada, mas simplesmente como literatura. E acho natural que essa literatura se faça mais presente em momentos em que nosso entorno nos traz tanta sensação de ameaça, injustiça, impotência. Uma pessoa hoje, que tenha um mínimo de percepção, olha em volta e se pergunta: para onde estamos indo? Nem que seja para se espantar com o mais banal: de onde vem esse frio fora de hora? Que porra de trânsito é esse? Por que tanta violência? E, claro, em uma circunstância assim, aparecem mais escritores que se sensibilizam com essas questões e as colocam em seus livros. Mas pegue os grandes nomes da literatura mundial – já que não é novidade o mundo ser violento, hostil, injusto - e você verá que todos eles se preocupam com essas questões agudamente humanas. Portanto, é certo: podem não ter os holofotes da mídia, mas creio que boa parte dos escritores estão permanentemente, e desde sempre, atentos a essas questões.

– Nesses dois sentidos, o de uma literatura que possa causar tanto identificação (como na pergunta 1), como engajamento (na pergunta 2), como você avalia o papel da crítica literária nesses dois processos?

A crítica literária pode ser excelente, aquela que informa tanto o leitor quanto o próprio autor e o leva a querer escrever mais – essa eu respeito muitíssimo e me enriqueço ao lê-las. Mas a crítica pode ser, também, aquela anódina ou estritamente acadêmica, que para os leitores e escritores não costuma significar muito; ou ainda, a outra, que eu já nem chamaria de crítica, e que se torna perversa – talvez não em suas intenções mas em seus resultados –, confundindo o leitor, humilhando quem escreve, tornando seu caminho mais hostil do que já é.

E assim como a literatura dita feminina e a literatura dita histórica, a literatura dita engajada também já sofreu bastante com a crítica mais acadêmica ou apenas mais hostil, a começar por essa categorização que parece querer expulsá-las da literatura dita a Boa e Grande. Ora! Deem uma olhadinha para trás e para o lado: Cervantes, Dante, Tolstói, Dostoiévski, Heinrich Böll, Garcia Márquez, José Maria Arguedas, Margaret Atwood, Ian McEwan, Bolaño, Jonathan Franzen, Machado, Graciliano, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, a atualíssima Maria Valéria Rezende, e nem preciso citar mais: sobre o que escreveram e escrevem eles? No entanto, nenhum é chamado aqui de “escritor engajado”. Curioso, não?

Por outro lado, e para além da crítica, o que mais conta para quem escreve é a recepção de seus leitores. São eles, os leitores que, com suas leituras diversas e fecundas, realizam a nossa escrita e as fazem viver.

[01/08/2023 09:00:00]