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Quando a leitura cai feito uma luva
PublishNews, Henrique Rodrigues, 02/01/2023
Em sua coluna, Henrique Rodrigues aponta o livro como bem cultural a ser valorizado pela sociedade

Estava escrevendo a última colaboração do ano aqui para o PublishNews sobre o que esperar para 2023. Ziguezagueava pelas redes sociais e, talvez direcionado via algoritmo para o assunto, vi a notícia de um canal chamado Choquei. A legenda: “GRAVE: Luva de Pedreiro ganha livro de presente do amigo oculto do Fantástico”.

No texto de descrição do post, o “choque” continuava: “O Gustavo Scarpa deu um livro pro Luva de Pedreiro no amigo secreto do Fantástico. Por isso que eu não entro nessas brincadeiras e vocês?!”. (sic) Não preciso descrever a trajetória do jovem baiano Iran Ferreira, já bastante conhecida. Mas diante do espanto o meu filho me atualizou do contexto: o Luva de Pedreiro seria analfabeto. Umas pesquisas me fizeram pensar que ele talvez se enquadre num daqueles níveis de analfabetismo funcional, em que o indivíduo, apesar de conseguir decodificar letras e números e assinar o nome, tem dificuldade de compreender textos e realizar operações matemáticas.

Os níveis de analfabetismo funcional são alarmantes no país. É daquelas doenças invisíveis, que passam despercebidas por pessoas, empresas e governos, mas cujos sintomas estão intimamente ligados à nossa desigualdade social endêmica. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), apenas 12% da população brasileira entre 15 a 64 anos chegam ao maior nível de alfabetização funcional, chamado Proficiente. É muito pouco. É vergonhoso, na verdade.

Além dos desafios da educação e cultura, também bastante conhecidos, o que me chama a atenção aqui é o lembrete que o post do Choquei dá a todos nós que trabalhamos nesta área: a ideia de livro e leitura como algo prazeroso, positivo e libertador não é comungada por boa parte da população. Fora as discussões internas de sempre (brasileiro lê/brasileiro não lê), é importantíssimo que tenhamos noção de que, fora das redomas, bolhas e nichos do setor, no mundo real mesmo, há muito trabalho a se fazer.

Assim, o Choquei não choca tanto, pois a postagem reflete um pensamento bem comum. Dar um livro de presente, especialmente se aquele que recebe não tem aquele objeto como parte do seu dia a dia, deveria ser algo a se comemorar, e não ser tratado como um motivo de chacota. Essa engrenagem da desleitura não é nova, pois faz parte de uma secular estratégia elitista de manutenção da pobreza e da miséria, que está sedimentada tão profundamente nas nossas vidas que são repetidas no automático por muita gente.

Outro aspecto que faz dessa postagem irresponsável é o discurso, também batido mas ainda muito vigente, de que não é necessário ler, estudar para se dar bem na vida. Aquele papo de que “tem muito advogado dirigindo táxi”, comum nos anos 1990, encontra seu eco megafonado nas redes sociais com sua lógica perversa e lucrativa como fonte de sucesso. Por outro lado, essa linha de pensamento é bem impulsionada neste período horrendo de perseguição e censura a livros, de desvalorização da cultura, de tantas miopias no pior governo de que se tem notícia. Um adolescente que já não tem estímulo à leitura em casa, na escola e em nenhum outro lugar, ao ver postagem como esta, dificilmente vai mudar de ideia sobre o valor simbólico de um livro.

Leio que o novo agente do Luva de Pedreiro, o jogador de futsal Falcão, está orientando o jovem para que ele estude e encontre sua autonomia. Talvez sem querer, foi a Paulo Freire. Nessa linha, ao ganhar milhões em publicidade, Iran Ferreira poderia abrir caminho para que outros tantos jovens que não têm oportunidade também encontrem uma saída para a vida difícil.

Por isso foi que Gustavo Scarpa deu um objeto precioso ao jovem Iran. Imagem esquisita de início, analfabeto funcional com livro sim é o verdadeiro choque, a partir do qual a sociedade brasileira pode despertar e sair da inércia atual. Porque onde livros não chegam é onde mais precisam estar – e que esse seja um mote para nos guiar neste 2023 que se inicia. Para mim, o presente caiu feito uma luva.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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