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Livro retrata ascensão e queda de brasileiros no submundo do tráfico da Indonésia

'Nevando em Bali', da australiana Kathryn Bonella, revela lado obscuro da ilha paradisíaca
Mais notório dos personagens retratados na obra, o carioca Marco Archer foi preso em 2004 ao tentar entrar no país com quase 14 quilos de cocaína Foto: Bea Wharta / Reuters
Mais notório dos personagens retratados na obra, o carioca Marco Archer foi preso em 2004 ao tentar entrar no país com quase 14 quilos de cocaína Foto: Bea Wharta / Reuters

RIO —  Meca das praias badaladas, do surfe e da juventude dourada, a ilha de Bali, na Indonésia, atrai milhares de turistas todos os anos. O charme e o glamour do lugar, no entanto, escondem um lado perigoso — ou, como define a jornalista australiana Kathryn Bonella, um catch, uma “isca” que a fascinou. Nos últimos anos, ela tem se dedicado a cobrir o submundo do tráfico local, que permanece invisível para a maior parte de seus visitantes, mas enche o bolso de aventureiros que se lançam repentinamente na ilegalidade.

No livro “Nevando em Bali” (Geração Editorial), Kathryn entrevistou traficantes locais, rastreando suas trajetórias e ascensões. São, no geral, surfistas brasileiros, jovens de classe alta que viajaram à Indonésia nos anos 1990 e 2000 em busca da onda perfeita, mas acabaram seduzidos pela vida de dinheiro fácil, hedonismo, festas épicas e orgias com modelos. Entre os personagens do livro, o mais notório é o carioca Marco Archer, preso em 2004 ao tentar entrar no país com quase 14 quilos de cocaína dentro dos tubos de uma asa-delta, e cujo dia a dia no cárcere foi retratado no recente documentário “Curumim”, de Marcos Prado. Condenado à morte pela Justiça indonésia, Archer foi fuzilado em 2015.

— Em um segundo, (Bali) pode ir do paraíso ao inferno. Raspe a superfície do paraíso, e você verá um mundo diferente — diz Kathryn, em entrevista por e-mail. — Sempre fui apaixonada por contar histórias sobre pessoas, e os traficantes de Bali têm vidas extraordinárias; bizarras, extremas, com altos incríveis e baixos chocantes. Não os absolvo por fazerem o que fazem, mas acho fascinante.

Archer é um exemplo dessa brutal virada de sorte na vida de um traficante de Bali, mas não o único. Os criminosos retratados no livro se mantêm na corda bamba, muitas vezes oferecendo serviços de “mula” — pessoas que transportam a droga de um destino a outro — para manter uma vida de ostentação, com viagens, aluguel de mansões, consumo de produtos de luxo e tudo mais que o dinheiro compra. A qualquer momento, podem trocar “as festas pela tortura policial e os hotéis cinco estrelas pelas celas de uma prisão do Terceiro Mundo”, como lembra Kathryn.

As ilhas paradisíacas costumam atrair um tipo único de traficante, argumenta a jornalista, que começou a investigação do livro em 2006. Seus entrevistados são “espertos, espirituosos, engraçados, poliglotas e de boa aparência”, conta ela. Os brasileiros dominam, não apenas porque a cocaína vem da América do Sul, mas também porque seus perfis lhes permitem passar mais facilmente pelos controles de fronteira — afinal, em comparação com bolivianos, peruanos e colombianos, são os que viajam a Bali com mais frequência e assim têm mais chance de se passar por turistas comuns. Por serem praticantes de esportes radicais, podem esconder a mercadoria dentro de pranchas ou tubos de asa-delta (desde a prisão de Archer e de outras mulas, porém, o truque ficou manjado).

A autora Kathryn Bonella: quase 10 anos investigando o mundo do tráfico em Bali Foto: Divulgação / "Nevando em Bali"
A autora Kathryn Bonella: quase 10 anos investigando o mundo do tráfico em Bali Foto: Divulgação / "Nevando em Bali"

Um dos personagens principais do livro é Rafael — nome fictício —, carioca que começa a ganhar a vida como mula por influência de Archer e logo se torna um dos principais nomes do tráfico da ilha entre 1990 e 2000. Ao acumular meio milhão de dólares em dinheiro, já nem sabia mais onde e como guardar seus lucros. Acabou comprando uma mansão na beira da praia.

E o que faz da ilha indonésia um lugar tão especial na rota do tráfico internacional? O cenário que surge em “Nevando em Bali” sugere que, quanto mais jovens e ricos forem seus turistas, mais profícuo é o comércio de substâncias ilícitas. Apesar das leis rígidas contra traficantes, a droga turbina a economia local, e a corrupção rola solta entre agentes e fiscais de segurança. Mas, além das propinas a autoridades, privilégios dinásticos também contam. Archer, por exemplo, teve como freguês um membro da família real indonésia, que fumava maconha em público sem nunca ser incomodado pela polícia.

Trilogia sobre crimes

Kathryn passou a se interessar por esse universo em 2004, quando saiu de seu emprego em um programa de notícias da TV australiana para escrever a biografia de Shapelle Corby, jovem inglesa condenada a 20 anos de prisão depois de tentar entrar na Indonésia com maconha. Foi o ponto de partida que deu origem a outros dois livros: “Hotel K.”, um retrato de Kerobokan, a mais icônica prisão do país asiático, onde estão encarcerados diversos traficantes; e “Nevando...”, que fecha o que a jornalista chama de “minha trilogia de Bali”.

Em seus dez anos investigando a ilha, Kathryn visitou várias vezes a prisão de Nusakambangan, a Alcatraz da Indonésia, para entrevistar Rodrigo Gularte e Marco Archer, que acabaram sendo fuzilados pouco depois. Em Gularte, encontrou um personagem introspectivo e desanimado. Já Archer era acolhedor, carismático e animado.

— Ele cantou para mim, cozinhou para mim e quase sempre eu saía de nossos encontros me sentindo otimista — conta ela. — Incrível, já que ele se encontrava no corredor da morte. Ele estava ansioso para me contar suas histórias, e muitas vezes ria enquanto me falava sobre algumas de suas loucas escapadas (até ser preso pela última vez, Archer teve fugas rocambolescas da prisão e da polícia).

Para Kathryn, o traficante condenado à morte estava esperançoso em seus últimos dias. E não parecia arrependido de seus atos.

— Sentia que tinha tido uma grande vida, e que o tráfico lhe havia permitido viver seus sonhos — lembra ela. — Mas é o exemplo clássico de alguém cuja vida de sonho se transforma em um pesadelo ao acordar.

As execuções de Archer e Gularte foram um sinal de alerta para muitos traficantes destemidos que convivem com o risco. Desde que Kathryn publicou seu primeiro livro sobre a ilha, no entanto, muita coisa mudou em Bali. Mais turistas, mais hotéis e, consequentemente, um mercado maior para as drogas.

— Como no mundo inteiro, a segurança apertou drasticamente — diz a autora. — O aeroporto de Bali costumava usar uma máquina primitiva de raio X, e passaram a ter máquinas sofisticadas e agentes treinados. Então está mais difícil para os traficantes, que agora já sabem que a Indonésia executa ocidentais.

Uma coisa, porém, não parece ter mudado: o poder da propina.

— A diferença é que agora elas ficaram mais caras — acrescenta Kathryn.

“Nevando em Bali”

Autora: Kathryn Bonella.

Tradutor: Leandro Franz. editora: Geração Editorial.

Páginas: 368. Preço: R$ 54.