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Em novo livro, Silviano Santiago narra últimos anos de Machado de Assis

Misto de ensaio, romance e biografia faz relações entre doença do autor e sua escrita
Silviano em seu escritório, em Ipanema: reflexão sobre a velhice e a solidão Foto: Bárbara Lopes / Agência O GLOBO
Silviano em seu escritório, em Ipanema: reflexão sobre a velhice e a solidão Foto: Bárbara Lopes / Agência O GLOBO

RIO — Com as estantes já lotadas, os livros vão se acomodando por todos os cantos do escritório de Silviano Santiago, em Ipanema. Vivendo sozinho, o crítico e escritor de 80 anos não consegue arrumar o material que vem acumulando em décadas de atividade intelectual. Em cima da escrivaninha, espalhados, alguns títulos foram consultados obsessivamente nos últimos meses: “Floresta da Tijuca — Natureza e civilização”, de Claudia Heynemann; “As histórias das ruas do Rio”, de Brasil Gerson; “O álbum da Avenida Central”, com fotografias de Marc Ferrez; além de uma ampla bibliografia de Machado de Assis. Neles, encontrou peças importantes para compor um duplo quebra-cabeças — o dos primeiros anos do Rio do século XX e o dos capítulos finais da vida do Bruxo do Cosme Velho, morto em 1908.

Em “Machado” (Companhia das Letras), Silviano se debruça nos quatro últimos anos do autor de “Dom Casmurro”, um período relativamente desprezado por críticos, biógrafos e historiadores. Numa escrita que transita entre romance, ensaio e biografia, busca as relações entre o drama íntimo de um Machado solitário, em luto pela morte da mulher, Carolina, e castigado por problemas de saúde e pela epilepsia, e as redes de intrigas do Rio de Francisco Pereira Passos. Mas há ainda uma outra conexão: ao expor a sua pesquisa e torná-la transparente, o autor se coloca como um dos protagonistas, um narrador perdido entre seus livros, suas obsessões e suas ligações com o biografado. Coincidência curiosa (o texto é repleto delas): Silviano nasceu no mesmo dia em que Machado morreu, um 29 de setembro.

— São duas solidões no livro. A do Machado, de viúvo, solto pela cidade do Rio, e a minha — diz o escritor. — O Machado desses últimos anos vivia num timing especial, em que cada segundo passa a ser importante, em que os olhos se demoram na janela, o corpo passa a funcionar em câmera lenta... É o timing da idade e do luto. Me fascina escrever sobre esse tipo de experiência da velhice, em que o prazer enquanto tal desaparece aos poucos, em que até a sexualidade muda, e vamos nos descampando por compensações. Moro sozinho em meu apartamento, e às vezes parece horrível. Meu maior medo é que só a mulher que faz a limpeza vai descobrir o meu corpo.

Silviano, que em seu último livro, “Mil rosas roubadas” (2014), narrou a longa agonia do amigo Ezequiel Neves, volta a falar, com “Machado”, sobre o lento desaparecimento de um personagem.

— A partir do século XVIII, criou-se o romance de formação. O que estou vendo, no século XXI, é o surgimento de um outro gênero, o romance da sobrevida, que já está em “Mil rosas roubadas”. Tenho me interessando em trabalhar com sobreviventes, em me perguntar sobre o que é a sobrevida. Machado estava muito mal em seus últimos anos, mas mesmo assim se manteve produtivo. A prova é que estava escrevendo “Memorial de Aires”, um grande livro, e o manuscrito original, que eu analisei, mostra muitas correções, um trabalho imenso.

Já no capítulo inicial, Silviano faz uma espécie de configuração da velhice. Assaltado pela “solidão derradeira” em sua casa, recupera um episódio público de mal-estar de Machado a partir do relato real de um personagem um tanto obscuro, o jornalista e escritor monarquista Carlos de Laet. Certa tarde, este último surpreendeu o Bruxo bamboleando pela rua, à beira de um desmaio. É possível que tivesse acabado de sofrer uma convulsão. Silviano analisa as relações estreitas entre arte e doença, corpo e escrita, com o passo torto do autor e seus ataques epiléticos servindo de metáfora para explicar sua prosa enviesada, sinuosa. Como se, em suas constantes convulsões, que Silviano chama de “mortes passageiras”, se aninhasse o pendor de Machado pela desconstrução política, filosófica e literária.

— Talvez a maior originalidade do livro seja a questão da doença de Machado, que nunca foi tão esmiuçada — explica o autor. — Sua escrita tem aquela construção que vai e volta, perde o rumo.

Estranhos acasos

E é esse viés convulsivo que o torna extremamente crítico em relação ao mundo à sua volta, afirma Silviano. A escrita ambígua do Bruxo, com suas múltiplas camadas, não combina com o pensamento dominante daquele Rio do início do século XX. Mais do que o retrato de um escritor, “Machado” também é um painel ambicioso de uma cidade em um processo forçado de modernização. A República estende seus tentáculos sobre a educação, a cultura e o urbanismo, impondo um novo imaginário estético e social, seus ideais prometeicos e cientificistas. É um “bota abaixo” para recomeçar do zero, sem história, sem vestígios.

Silviano apresenta figuras transversais, mas fascinantes, desse período histórico. Além de Laet, perseguido por seus ideais monárquicos, surgem o médico Miguel Couto, símbolo da vitória da ciência, com quem Machado se trata; o pintor Eliseu Visconti, que dentro do espírito republicano tenta abolir todas as musas e a tradição grega; ou ainda o jovem escritor Mário de Alencar, também epilético, que troca ideias sobre homeopatia com o Bruxo.

— A relação que coloco entre Machado e sua época é a desse jogo que ele adora com as simetrias perfeitas, tendo ao centro esse eixo absoluto, que supostamente leva do atraso ao progresso — diz o autor. — Só que, quando você analisa com cuidado, vê que esse eixo nunca constrói uma simetria perfeita. Ao contrário, é sempre enviesado. Na verdade, Machado desmontava os discursos, os modos de raciocínio, a ideia de progresso.

Embora se apoie em documentos, que aparecem no livro em forma de caderno de notas, Silviano gosta de trabalhar com hipóteses. Também se interessa pelas coincidências, em ver como os acasos estranhos vão se formando, como o fato de três escritores epiléticos, Machado de Assis, Mário de Alencar e Magalhães de Azevedo possuírem a mesma inicial, MdA. São esses mistérios que dão o tom de “romance” da publicação, preenchendo com o prazer da suposição de ficcionista as frestas deixadas pelos historiadores. Nesse sentido, as relações entre Machado e Mário de Alencar oferecem novos caminhos para o estudo do escritor. A correspondência entre os dois é pouco analisada pelos estudiosos, tanto que foi publicada recentemente, mas apenas com as cartas de Machado. Figura aparentemente menor na história, Mário é filho de José de Alencar e neto de Thomaz Cochrane, o fundador da homeopatia no Brasil.

— Estou num momento em que me fascina muito a amizade — diz Silviano. — Mário vê Machado como um mentor. É como se o romance de formação de Mário se misturasse com o romance de sobrevivência de Machado.

“Machado”

Silviano Santiago

Romance

Companhia das Letras

424 páginas

R$ 69,90

Lançamento nesta segunda, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon (3138-9600)