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A ternura para vira-latas de Marcelo Mirisola

Em ‘A vida não tem cura’, romancista fala sobre amor e perversão em SP
O escritor Marcelo Mirisola Foto: Gustavo Stephan / Agência O Globo
O escritor Marcelo Mirisola Foto: Gustavo Stephan / Agência O Globo

RIO — A linguagem resgata o paulista Marcelo Mirisola de todos os excessos de uma obra vasta que transita entre o conto, a crônica, o romance e a dramaturgia. O autor não tem meias medidas: investe contra tudo e contra todos e quanto mais se esforça para ser escatológico mais deixa em quem o lê com atenção o contato com uma profunda sensação de desamparo que atravessa tanto o escritor como o personagem. Assim, o sentimento de mal-estar que chega ao leitor pode se desdobrar em outras direções.

Mirisola não parece se esforçar para escrever bem: seu texto flui entre o nojo e o lirismo com fino acabamento. Esta carpintaria da escrita se revela não só na criação de personagens que parecem não se conhecer nem se reconhecer, na expressão do autor, mas também num domínio da língua que privilegia o trivial e os diálogos exagerados porém plausíveis.

Um dos centros de “A vida não tem cura” é a homossexualidade masculina, tema já tratado em outras obras, mas que, neste caso, vem acompanhado dos tormentos inimagináveis que podem se esconder numa relação a dois entre homem e mulher.

Natasha e Luís Guilherme, o protagonista, se conheceram e se apaixonaram adolescentes, embalados por fogueiras na praia numa idílica Ubatuba, quando ainda não sabiam que “a vida não tem o alto valor que lhe atribuímos. Nem o amor. Apenas nos dizem algo, vida e amor, quando estamos vivos e doentes”. No andar da carruagem de uma relação em que a perversão e sedução caminham de mãos dadas, começam a ultrapassar limites. Isto inclui sexo a três com um parceiro negro a quem Natasha instiga Luís a beijar na boca.

A mulher parece crescer com os experimentos: inicia um caso com uma gay de 46 anos e deslancha na profissão de gerente. Enquanto isso, Luís, “professor de matemática delivery”, vai afundando como um barco desgovernado, disposto a tudo para satisfazer a violência da parceira que, entre outros feitos, humilha a velha mãe dele e ainda pede o troco.

Aquilo que se pode denominar perversão tem a sua contrapartida não num tom moralista, pois esta palavra não parece fazer parte do vocabulário de Mirisola, mas num poço sem fundo em que Luís, ao mesmo tempo em que repudia o corpo da mulher, vai sucumbindo à sua autoridade. E cada vez mais eles se afastam do tom das canções de Renato Russo que embalou os primórdios do casamento, da lembrança dos tênis vermelhos e da língua dos anjos. Pois, para Luís, a língua de Natasha é bifurcada como a de um demônio ou de uma serpente.

Socos contra a parede, latas de lixo chutadas na rua e um desespero que vai tomando até o tom de voz do protagonista fazem parte do cenário. Clarinha, a filha do casal, também é envolvida no clima de gato e rato ou de gato e sapato praticado dentro de casa. A degradação de Luís, que engorda e se torna impotente, inclui serviços prestados como gerente e escravo a uma travesti chamada Baronesa e ainda uma tentativa de achar consolo no Centro de Reabilitação e Cura de Gays e Travestis da Igreja Country da Graça Eterna de Deus, na qual o autor esbanja escatologia e ironia. Quem nunca se imaginou perverso que atire a primeira pedra e quem se dispõe à prática que use camisinha. Comportamentos fora do padrão fazem parte da condição humana, mas é possível considerar como talvez a obra de Mirisola se enriqueceria se ele não insistisse tanto em tal temática.

Momentos de maior ternura são enviados à cachorra Pretinha, uma vira-lata adotada pela mãe de Luís, e à poeta Ana Cristina Cesar, que permeia o final do romance numa referência ao verso dela: “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”. Mirisola parece não só sonhar com um navio enquanto metáfora de deslocamento e até de superação, como também continua disposto a enxergar estrelas no firmamento poluído da capital paulista e no céu cheio de imagens e de construções literárias da sua própria boca.

Elias Fajardo é escritor e jornalista, autor do romance “Belo como um abismo”, finalista do prêmio Jabuti 2015

“A vida não tem cura”

Autor: Marcelo Mirisola

Editora: 34

Páginas: 88

Preço: R$ 35

Cotação: Bom