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Sexto romance de Michael Cunningham chega ao Brasil

Escritor americano conta que baseou personagens de 'A rainha da neve' em amigos

O escritor americano Michael Cunningham: “Foi a primeira vez que tive de pedir autorização para publicar algo. Se meus amigos não tivessem gostado, eu começaria tudo outra vez”
Foto: Divulgação
O escritor americano Michael Cunningham: “Foi a primeira vez que tive de pedir autorização para publicar algo. Se meus amigos não tivessem gostado, eu começaria tudo outra vez” Foto: Divulgação

NOVA YORK — Em seu sexto romance, publicado nos EUA no ano passado e lançado agora pela Bertrand Brasil, Michael Cunningham envelhece em Nova York com seus protagonistas. “A rainha da neve” é centrado nos habitantes de um macambúzio apartamento em Bushwick, antes do processo de gentrificação do bairro.

Tyler é um músico quarentão, viciado em cocaína, refém das gorjetas que ganha como bartender. Barrett, seu irmão mais novo, com quem divide o aluguel, deixou o diploma de Yale embolorar e trabalha numa butique no vizinho Williamsburg, mais atraído por Andrew, o jovem namorado da patroa de meia-idade, Liz, do que pelo emprego em si. E Beth, sócia de Liz e noiva de Tyler, encara um câncer terminal no fígado.

No Brooklyn de novembro de 2004, a iminente reeleição de George W. Bush, a precoce neve e uma inexplicável luz azul observada por Barrett numa noite branca no Central Park são o pano de fundo para um encontro doído dos personagens com a maturidade, ainda que com centelhas de amor e compaixão pelo caminho.

“Preciso mergulhar num novo livro sem saber para onde vou. Minhas criaturas se recusam a se moldar a situações estabelecidas de antemão”

Michael Cunningham
escritor

Vencedor do prêmio Pulitzer por “As horas”, cuja adaptação para o cinema rendeu o Oscar de melhor atriz a Nicole Kidman em 2003, Cunningham, 62 anos, acredita que o mais celebrado de seus livros dificilmente seria transformado em filme pela Hollywood de hoje. Reverenciado pela prosa fina, ele lança no mês que vem nos EUA uma coleção de textos curtos inspirados em contos de fadas. Título e epígrafe do romance têm a mesma fonte: Hans Christian Andersen (1805-1875). O escritor conversou com O GLOBO em seu café favorito, no Greenwich Village.

O senhor baseou personagens de “A rainha da neve” em amigos. A transposição de sua vida cotidiana para a ficção é uma novidade?

Sim. Uma das personagens de “As horas” foi ligeiramente inspirada em minha mãe, mas nada como em “A rainha da neve”. Uma amiga foi diagnosticada com câncer, como Beth, e outro é músico e dependente químico, como Tyler. Na cultura americana, temos contado uma única história sobre viciados em drogas, a do junkie destrutivo, fraco, irresponsável, que termina morto num beco escuro, com uma agulha enfiada no braço. Eu queria tratar de um junkie cuja história foge desse clichê. Foi a primeira vez que tive de pedir autorização para publicar algo. Se eles não tivessem gostado, eu começaria tudo outra vez. Se eu não acreditasse na importância dos livros, não teria dedicado a minha vida a eles. Mas tenho consciência de que a vida dos que amamos é mais proeminente.

No início, Tyler e Barrett nem faziam parte do mesmo livro...

E nem eram irmãos. Juntamente com a ideia de falar de um artista junkie em busca do transcendental, tinha esse desejo de escrever sobre um cético que se depara com um fenômeno inexplicável, de caráter possivelmente religioso. Barrett se debatia com uma visão que não queria ter tido enquanto Tyler buscava desesperadamente algo além da realidade. Minha intuição, mais do que a pena, os fez irmãos, destinados a experimentar juntos o aparente paradoxo de suas experiências. Preciso mergulhar num novo livro sem saber para onde vou. Minhas criaturas se recusam a se moldar a situações estabelecidas de antemão, receita, creio, para uma literatura forçada, mecânica e artificial.

O cenário principal do livro, a zona norte pós-industrial do Brooklyn, é presença mais rara na mitologia ficcional de Nova York. Qual o poder de atração daquela parte da cidade para o senhor, que nasceu no meio-oeste dos EUA e foi criado na Califórnia?

Meu primeiro endereço em NY foi a Williamsburg de três décadas atrás. E ela era parecida com o Bushwick de 2004. Uma das questões centrais deste livro é como lidamos com o momento em que ainda não somos velhos, mas decididamente já deixamos de ser jovens. Queria meus personagens isolados na floresta, por quatro anos, até o fim da Era Bush. O conto de fadas de Nova York que me interessava, o das crianças forçadas a crescer, se deu nestes últimos anos naquela área, sem famílias de comercial de margarina. É como se eles estivessem perdidos na floresta do conto de fadas da juventude infinda. Uma imagem facilmente identificável, aliás, por homens gays. Há um estigma perverso, muito similar ao que afeta também as mulheres: após certa idade, os homossexuais se tornam invisíveis.

Barrett, cujo homoerotismo é apresentado logo no início do livro, de forma tão banal quanto delicada, se percebe ‘velho’ ao se aproximar dos 40 anos. Até que ponto ele é fruto de suas próprias percepções do universo gay?

Barrett é um personagem de seu tempo. As mudanças foram enormes e muito, muito positivas. Terminei um relacionamento de muitos anos recentemente e me surpreendi com a quantidade de gays igualmente solteiros que, já em um primeiro encontro social, são diretos sobre o desejo de ter filhos. Isso era algo inimaginável anos atrás. É o novo, ali, na sua cara. É também uma afirmação clara de que, se você permite que as pessoas sejam de fato livres para amar, seus desejos não são tão diferentes assim do status quo. De fora da lei até poucas décadas atrás, nós nos transformamos e nos percebemos desejando formar lares agradáveis e famílias funcionais, sem risco, creio, de um eventual asfixiamento do lado mais excêntrico e, vá lá, marginal, da identidade gay.

“Hollywood se rendeu de vez ao entretenimento barato. Quando um filme como “Perdido em Marte” vira referência de qualidade artística no cinemão, fica difícil”

Michael Cunningham
escritor

O senhor gostaria de ver “A rainha da neve” adaptado para o cinema?

Não há interesse. Hollywood mudou dramaticamente. Se eu levasse “As horas” para a Paramount Pictures hoje, não sei se eles se interessariam em adaptá-lo. Todo mundo que conheço vê muito mais ficção na televisão do que no cinema. Hollywood se rendeu de vez ao entretenimento barato. Quando um filme como “Perdido em Marte” vira referência de qualidade artística no cinemão, fica difícil. Executivos e produtores são muito mais conservadores do que há dez anos, e o foco é cada vez mais no lucro astronômico e rápido, não há interesse real na parte artística. A culpa, é, em parte do mercado internacional, cada vez mais importante para Hollywood, ditado pela fórmula dos efeitos especiais espetaculares combinados a estrelas facilmente reconhecíveis por metade da população do planeta. Os diálogos não têm mais tanta importância assim. Aliás, é quase melhor que eles não sejam bons. Por isso, não me arrependo de ter recusado uma série de pedidos de roteiro depois de “As horas”.

Como foi voltar a escrever contos para a coleção “A wild swan and other tales” (ainda sem título em português), algo que o senhor não faz amiúde desde o início de sua produção?

O formato, desta vez, me pegou de jeito: não tinha como não revisitar os contos de fada sem escrever, bem, contos. Quando chegava a um ponto em “A rainha da neve” em que me sentia perdido, sem saber para onde ir, reescrevia contos de fadas. Eram apenas exercícios. Foi só depois de terminar cinco adaptações que resolvi publicá-los.

O senhor está escrevendo neste momento um novo romance. O que já pode adiantar da história?

Posso dizer que é o mais longo que escreverei. Já ultrapassei a página 100 e ainda não passei do começo da história. O livro está tomando a forma de uma saga familiar que atravessa gerações em Nova York. Nesta altura do campeonato, conheço a cidade tão bem que me é impossível pensar em outro cenário. Por exemplo, eu me apaixonei pelo Rio, mas só passei uma temporada lá, não teria como escrever com a intimidade que tenho com essa tal de Nova York.