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Alexandra Lucas Coelho: ‘O Rio está todos os dias à beira do milagre’

Jornalista e escritora portuguesa, que trabalhou na cidade como correspondente, lança livro de crônicas sobre o Brasil

Alexandra Lucas Coelho, em Paraty: olhar estrangeiro
Foto:
Gustavo Stephan
Alexandra Lucas Coelho, em Paraty: olhar estrangeiro Foto: Gustavo Stephan

PARATY — Alexandra Lucas Coelho levou o Rio de Janeiro consigo para o outro lado do Atlântico. Depois de quatro anos como correspondente do jornal português “Público” na cidade, pediu demissão, arrumou as malas e foi se dedicar à ficção — palavra que lhe desagrada. Mas segue atenta ao que há de brutal e poético na capital carioca, onde vê uma alegria que nasce da tristeza de encarar a violência. Ao mesmo tempo em que lança na Flip seu livro “Vai, Brasil” (Editora Tinta-da-China), coletânea das crônicas que escreveu sobre o país enquanto esteve aqui — com noite de autógrafos no dia 8, às 19h, na Travessa de Botafogo —, prepara ainda “Deus dará”, um romance sobre o Rio. Alexandra é uma das convidadas da Flip deste ano e participa hoje, às 10h, da mesa “Turistas aprendizes”, ao lado de Beatriz Sarlo. Ela recebeu O GLOBO para analisar sua passagem pelo Rio e falar do novo romance.

Ano passado, você publicou uma crônica no GLOBO sobre seus motivos para deixar o Rio que repercutiu muito. Essa impacto reflete uma amargura do carioca com a cidade?

Só podia ter escrito aquela crônica depois de morar lá. Ela não tem nada de mágoa em relação ao Rio. Senti que podia falar, porque aquela cidade tornou-se a minha casa — e eu me tornei parte da cidade. É uma crônica de amor, olhando nos olhos. Quando você olha tão de frente aquilo que também é seu, você não vai mentir. Eu não podia continuar morando no Rio. A razão central era a escolha de abandonar uma redação e viver com menos dinheiro, para poder escrever livros. O Rio era um lugar onde eu não podia mais fazer isso, porque era demasiado caro. Mas foi uma decisão, saí sem mágoa. Aquilo meu que está naquela cidade vai continuar cá em mim.

A violência, que agora voltou a ser comentada, também a marcou?

Quem vê de fora pode ter a ilusão da cidade doce, mas quem mora lá sabe como é. A esmagadora maioria dos habitantes vive sujeita a uma violência constante. A violência da polícia, do tráfico; a violência de quem mora no morro, de quem demora duas horas para chegar ao trabalho. Esta violência começa com a chegada dos portugueses. O primeiro encontro é violento, com a morte dos índios. A história do Rio é de sucessivas violências.

Mas então o que há de prodigioso?

O prodigioso na cidade é que, tudo isso sendo verdade, todo esse passado continuando presente, ainda assim o Rio todos os dias está à beira do milagre. Não sei se tem a ver com a história da violência e de como a vida consegue transformar essa violência. Sobre essa alegria que virou clichê, quem mora no Rio sabe que ela vem do fundo da tristeza. Da opressão da violência. Sendo uma alegria que vem tão de baixo, é quase como se o Rio fosse uma cidade extra-humana. Eu vejo o Rio como um milagre humano. A cidade é uma prova de como continuar a ser humano.

No livro, você também fala da presença da natureza como uma violência. Por quê?

Tem a violência da natureza, violência de poder total. Depois de chegar ao Rio como jornalista, tive a experiência de cobrir os deslizamentos do começo de 2011 na Região Serrana. Passei a olhar o Rio de outra forma. É uma cidade que a todo momento pode ser engolida pela natureza. Ainda tem, em volta dos homens, a presença constante dessa natureza misteriosa, voraz, que sempre se está superando. Essa força incrível que o Rio produz é uma energia contra tudo isso. Tive a sorte de morar no Cosme Velho. A cidade onde passei mais tempo não foi a da praia, da espuma magnífica da orla. Foi um Rio muito mais secreto, quase da selva. Tinha cobra no banheiro, tucano, macaco-prego.

Você cobriu Oriente Médio e viu os efeitos do colonialismo. Por que escolheu o Brasil?

Cheguei ao Brasil depois de cobrir muitos anos o colonialismo dos outros: o espanhol, francês, inglês, otomano. Fiz uma viagem muito importante ao México em 2010, que virou o livro “Viva México”. Foi lá que tomei a decisão de ir ao Brasil. Depois destes anos atravessando todos esses colonialismos, eu ia situar-me em relação ao lugar de onde venho. Trazer todos estes lugares me libertou para olhar o Brasil mais longe de cada um dos fantasmas da nossa relação: a subserviência, a arrogância do ex-colonizador, o estar pedindo desculpas. Sei que não é qualquer lugar. É a minha língua, que já foi tomada, modificada. E tudo isso eu queria que agisse em mim.

Algumas crônicas do seu livro lembram muito o português brasileiro. A vida no país afetou sua linguagem literária?

Aquilo não era eu fazendo esforço para escrever como brasileira. Eu teria que ser impermeável para viver anos no Brasil, tendo como instrumento a escrita, e não ser atravessada pelas muitas mil possibilidades do português daqui. A língua, como a identidade, não está pronta. Não pertence a uns, nem a outros. Quando escrevi as primeiras crônicas sobre o país no “Público”, vários leitores me escreveram zangados, achando que aquilo era uma espécie de rendição. Como assim agora eu escrevia em português do Brasil? Só que não era. Era a língua de uma portuguesa que mora no Rio de Janeiro. Mas não há rendição, nós não estamos em guerra.

Isso aparece em “Deus dará”, o novo romance que você está escrevendo sobre o Rio?

Esse livro está escrito em muitas variantes do português. Se passa inteiramente no Rio, entre 2012 e 2014. É um arco que começa no momento da euforia (com o desenvolvimento do país), passando pelas manifestações, um momento muito forte.

Elas mudaram o livro?

Tudo isso mudou o livro. Vejo as manifestações como o momento em que o Rio vai para a rua, e a política ganha um espaço que ninguém supunha ter. Eu tinha a ideia de que o Rio fosse uma cidade tão soberana que não ligava para o mundo. Com elas, o Rio se liga ao mundo inteiro. Foi um momento de muita maturidade da cidade. E, hoje, aquilo que a cidade está vivendo como amargura ou desencanto talvez seja resultado dessa maturidade. Muita coisa saiu cá para fora. Foi uma coisa muito pungente, dolorosa quase. Originalmente, o livro se passaria em sete dias de 2012. Mudei tudo. Foi um pouco assustador, porque tinham umas personagens muito combativas. E (quando as manifestações começaram) parecia que as coisas estavam a se concretizar.

Já existem comentários de que o livro será polêmico.

É um grande risco, no Brasil e em Portugal, inclusive por conta dessas muitas variantes da língua. É algo muito difícil de fazer, tem muitas possibilidades de espalhar ao comprido. Em português brasileiro, isso quer dizer “dar ruim”.

Por que resolver tratar do Brasil pela ficção agora, com o romance que está preparando?

É um percurso que eu tenho feito. Este já é o terceiro romance que eu estou fazendo. Gosto da palavra romance como a ideia de um território livre. No jornalismo não sou livre, porque no jornalismo temos regras. Estou interessada num texto tão livre que eu possa fazer dele o que quiser, inventar as suas próprias regras.

Por que você viaja tanto?

Tinha muita curiosidade. Queria ver como era. E queria ver como era de perto. O clichê existe à distância. Viajar é ficar perto o suficiente para conseguir enxergar as diferenças. Viajei porque tinha muita curiosidade de ser atravessada por som, palavra, imagem. Pela língua, pelo que se come ou bebe. É importante transportar isso para a escrita. O texto é uma experiência erótica. Depois de todas as guerras pela identidade no mundo, acredito que a identidade não se reduz, mas se amplia.

Você é grande fã de Caetano. Como repórter que cobriu o Oriente Médio e escreveu sobre a Faixa de Gaza, o que acha dos apelos de Roger Waters para Caetano não tocar em Israel?

O Caetano é o artista vivo que mais me influenciou. Ele é um poeta imenso. Sua música e poesia são responsáveis por decisões e formas de olhar. Dito isto, tem muita coisa que o Caetano diz ou pensa com que eu não concordo. A forma como ele olha o Oriente Médio está longe da forma como eu olho.

Mas, na sua opinião, ele deveria boicotar o país como quer Roger Waters?

Não vou dizer a um artista o que deve fazer. O caminho de cada um é o caminho de cada um. Respeito quem opta por boicote neste ponto da política do Oriente Médio. Teria preferido que o Caetano e o Gil não tocassem em Israel. Mas não vou dizer que um artista não deve tocar. Posso dizer que não concordo. E eu não faria.