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Procura por bibliotecas-parque aumenta, mas ainda existem desafios

Preconceito contra moradores de rua está entre os problemas encontrados na principal aposta do estado para a cultura

Salão central da Biblioteca Parque Estadual, na Avenida Presidente Vargas, no Centro
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Guito Moreto
Salão central da Biblioteca Parque Estadual, na Avenida Presidente Vargas, no Centro Foto: / Guito Moreto

RIO - “As pessoas vão ao cinema ver filmes contra o preconceito, levantam cartazes em manifestações contra o preconceito, compartilham textos na internet contra o preconceito. Aí chegam aqui na biblioteca e trocam de lugar quando um morador de rua senta do lado delas, reclamam que o banheiro está com ‘cheiro de macaco’. Ouço isso todos os dias. Hoje mesmo um senhor esbravejou aqui porque não queria dividir a leitura do jornal com um deles, dizendo que a biblioteca é mal frequentada”, desabafa o mediador social da Biblioteca-Parque Estadual (BPE), no Centro, Fábio Moraes, de 41 anos.

Durante a última semana, O GLOBO percorreu as quatro bibliotecas-parque em funcionamento no estado, cujo modelo é a principal aposta do governo recém-eleito para a área da Cultura — a promessa é construir mais 15 semelhantes nos próximos quatro anos, sendo as próximas no Complexo do Alemão, Lins e São Gonçalo. Nestas visitas, conversas com funcionários, usuários e visitantes foram instrumentos para se fazer um balanço dos equipamentos. Entre as poucas queixas ouvidas em relação às bibliotecas em si (“sinal de internet é fraco” ou “os preços do café são caros”, por exemplo) a palavra “preconceito” sobressai nos discursos.

CUSTO DE R$ 25 MILHÕES POR ANO

Desde a inauguração da Biblioteca-Parque Estadual, na Avenida Presidente Vargas, em março, é Fábio Moraes o responsável pelo setor de inclusão social do equipamento cultural. A BPE funciona como a “cabeça” do modelo das bibliotecas-parque, que engloba ainda a Biblioteca-Parque da Rocinha, inaugurada em 2012; a Biblioteca-Parque de Niterói, de 2011, e a Biblioteca-Parque de Manguinhos, de 2010. Juntas, elas têm um custo de R$ 25 milhões ao ano aos cofres do estado. Inspiradas no modelo implantado na Colômbia, as bibliotecas-parque do Rio recebem cada vez mais frequentadores (nos últimos três meses, a média de aumento das quatro foi de 45%) e têm o diferencial não ser apenas uma coleção de livros disponível para empréstimo, mas um complexo de entretenimento e cultura gratuito, com salas de cinema, estúdios de música, café e espaço para atividades diversas — e inclusivas.

Nenhuma das quatro bibliotecas recusa leitores. Ali, qualquer pessoa pode — e deve — entrar. Pode ler jornais e revistas. Pode usar os computadores. Pode ler um livro recostado numa das muitas poltronas assinadas por designers caros (se tiver comprovante de residência, pode até levá-lo para casa). Pode ver as exposições, participar das oficinas. Pode gravar uma música no estúdio. Crianças, concurseiros, fãs de super-heróis, historiadores, aposentados, donas de casa, pós-doutorandos, leitores de “Harry Potter”, Dostoiévski, Mauricio de Sousa, John Green ou Sêneca. Moradores da Baixada, da Central, da Chatuba de Mesquita, de Icaraí ou de Ipanema. Ou moradores da rua.

— O preconceito é uma doença que eu acho que não tem cura — vaticina o jardineiro (e morador de rua) William de Sousa, de 36 anos, frequentador diário da Biblioteca Parque Estadual, que durante a entrevista lia “O jovem Martin Luther King” e levava fones no pescoço para assistir a filmes no setor de audiovisual. — Essa é a minha casa todos os dias, da hora que abre, às 10h, à hora que fecha, às 20h. E todos os dias ouço alguma piadinha, percebo o olhar atravessado, o desprezo.

Expulso da comunidade em que vivia pela milícia, William mostra uma carteira profissional com o registro de jardineiro — ofício que aprendeu no Jardim Botânico, segundo ele, e no qual não consegue emprego justamente por morar na rua. Para sobreviver, ele cata latinhas (“o governo devia criar um projeto para incentivar a reciclagem, que hoje é a única forma de quem não tem comprovante de residência ganhar algum dinheiro honestamente”).

— O preconceito surge de onde menos se imagina. A gente recebe muitas queixas preconceituosas pela página do Facebook e por e-mail. O que me desanima muito, porque o princípio de uma biblioteca pública é ser um instrumento de socialização, não de isolamento. Mas também recebemos muitas mensagens de solidariedade, de pessoas que celebram a inclusão social que está sendo promovida — declara Pedro Sotero, diretor executivo do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), organização social responsável pela gestão das Bibliotecas-Parque. — É preciso lembrar que a biblioteca foi aberta num local abandonado da cidade, e nosso desafio era transformar as pessoas que viviam nas calçadas da Avenida Presidente Vargas em leitores. Em muito pouco tempo, conseguimos.

Pedro reconhece que o equipamento cultural, apesar de encher os olhos de qualquer visitante, ainda precisa de melhorias: no próximo ano, a gestão da cafeteria vai mudar (muitos frequentadores reclamam dos preços, onde um café custa R$ 6), assim como o esquema de comunicação interna (“percebemos que muitas pessoas visitam a biblioteca mas desconhecem sua extensa programação”, diz ele), e a acessibilidade.


Na Boblioteca-Parque da Rocinha, as crianças vão sozinhas, segundo funcionários
Foto: Guito Moreto
Na Boblioteca-Parque da Rocinha, as crianças vão sozinhas, segundo funcionários Foto: Guito Moreto

Como cada uma das quatro bibliotecas-parque tem perfil e características distintos, os problemas reclamados pelos frequentadores também são diferentes. Apesar de ter sido inaugurada há dois anos, a Biblioteca-Parque da Rocinha (equipamento com quatro andares, duas varandas amplas, cozinha equipada para cursos de gastronomia, sala de vídeo e acervo de 13 mil itens) ainda não teve o teatro ou os estúdios de música abertos. Além disso, é o que registra a frequência mais baixa, recebendo basicamente crianças. Na última terça-feira, às 14h50, havia apenas 16 na lista de presença.

— Poucos adultos aparecem, quando vêm, é no fim de semana. A maioria das crianças vem sozinha — comenta Leandro “Urso”, 28 anos, morador do bairro e funcionário há um ano. — Elas passam a tarde aqui, assistindo a desenhos animados e lendo gibis.

Na Biblioteca-Parque de Niterói, o problema é oposto: com público formado na maioria por idosos e concurseiros, faltam crianças e acervo infantil. Tampouco há um café ou área de convivência.

— A lista de melhorias para as bibliotecas no ano que vem inclui a construção de uma cafeteria de Niterói, ampliação do acervo infantil e inauguração do teatro e estúdios de música na Rocinha. Em relação ao baixo público, acredite: no início era ainda pior — admite Pedro Sotero, para quem também falta confiança dos moradores, dificuldade só superada com o tempo.

Primeira a ser inaugurada, a Biblioteca Parque de Manguinhos foi absorvida pelos jovens da região. Na última segunda-feira, muitos se dividiam entre rodas de rima e de violão. Havia casais de namorados e um mural exibia a última atividade feita por de crianças: um concurso de caricaturas do escritor Paulo Leminski, autor homenageado de novembro (cada biblioteca escolhe um escritor homenageado por mês). O principal problema, comenta o bibliotecário Felipe Correia, é que os jovens só usam a internet e leem pouco. A solução foi criar estratégias como o projeto “Li e gostei”:

— A gente começou a usar o tempo de internet como moeda de troca. Como eles só têm acesso a uma hora de internet livre por dia, quando acaba o tempo a gente oferece uma hora a mais caso eles leiam um livro e recitem um trecho. Todos topam.