Cultura Artes visuais

Mostra exibe anotações em livros da biblioteca de Waly Salomão

Exposição com o acervo inédito do poeta abre ao público hoje na Biblioteca Parque Estadual

Um dos livros grifados por Waly: “O grifo muda o nosso olhar em relação ao livro. A gente ouve a voz dele nas marcações”, diz Omar Salomão, filho de Waly e curador da mostra
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Divulgação
Um dos livros grifados por Waly: “O grifo muda o nosso olhar em relação ao livro. A gente ouve a voz dele nas marcações”, diz Omar Salomão, filho de Waly e curador da mostra Foto: Divulgação

RIO — A ideia surgiu por acaso, numa conversa da editora Anna Dantes com o músico Marcelo Yuka. Ele viu o livro “Signos”, de Merleau-Ponty sobre a mesa do escritório dela, tomou-o para folhear, e Anna comentou que o exemplar havia sido do poeta Waly Salomão. Estava ali porque ela começaria em breve a pensar em uma exposição sobre Waly, mas que ainda não tinha um mote definido. Na última página do livro, Yuka notou uma ameaça de poema entre rabiscos, frases sublinhadas, palavras circuladas. Anna comentou que todos os livros de Waly eram assim, repletos de grifos. O músico sugeriu: “Você podia fazer uma exposição só com os grifos dele: ‘A biblioteca de grifos de Waly Salomão’”.

— Pronto. Ali nasceu a exposição. A ideia estava na minha mesa, e eu ainda não tinha percebido — comenta Anna, ao lado do poeta Omar Salomão, filho de Waly, que assina com ela a curadoria da mostra que começa hoje para o público na Biblioteca Parque Estadual e segue até o dia 14 de dezembro, com exemplares do acervo pessoal do poeta morto em 2003. — Quando a gente se depara com as anotações que ele fazia, a maneira como ele lia, entende muito da mente dele. Os grifos eram um recado para ele mesmo como leitor futuro, como uma mensagem na garrafa. E agora as mensagens estarão ao alcance de todos os leitores.

Versos soltos entre anotações no livro de Merleau-Ponty Foto: Reprodução
Versos soltos entre anotações no livro de Merleau-Ponty Foto: Reprodução

Ato de libertação

Waly lia compulsivamente. Comia os livros, com aquela bocarra cheia de dentes e sorrisos, dobrando suas páginas, marcando palavras com o que tivesse à mão, fossem canetinhas, marca-textos ou as próprias unhas (Omar conta rindo das vezes em que viu o pai fazer isso). Fazia desenhos envolvendo as frases, emoldurava palavras unas, e às vezes, ao ler o mesmo livro em línguas diferentes, fazia anotações completamente distintas. Tinha cerca de 8 mil volumes nas estantes de casa — e a maioria carrega o percurso da sua leitura, como poderá ser visto pelo público na exibição.

Marguerite Duras era uma personagem constantemente grifada por Waly Foto: Reprodução
Marguerite Duras era uma personagem constantemente grifada por Waly Foto: Reprodução

— O grifo muda o nosso olhar em relação ao livro. Os que ele fazia não eram grifos de estudo, as marcas não indicam uma leitura de estorvo, mas de libertação. A gente ouve a voz dele nas marcações, seja em volumes de Roland Barthes, Murilo Mendes ou nos livros de zen-budismo — observa Omar, lembrando que muitas dessas anotações ecoam em seus poemas e letras de músicas.

É possível ver mesmo: no livro “Lírica, Épica, Teatro e Cartas de Camões”, por exemplo, Waly emoldura a frase “Oh! bem-aventurados fingimentos”, assinando embaixo, como se o verso também pudesse ser dele; no livro “Malone morre”, de Samuel Beckett, ao lado da frase “Nasci sério, como tem gente que já nasce sifilítico”, escreve: “parece Nelson Rodrigues!”. Completa poemas de Drummond, como se fossem textos abertos; e numa dedicatória de um livro a Oswald de Andrade, desenha ali uma espécie de labirinto cerebral antropofágico sobre o nome do autor. Ah, sim, o poema notado por Yuka também esta lá: “Uma arte poética/ manter tenso o arco que /Abrange caos e cosmos/ Uma área poética/ Limpar a área do terreno/ Desprogramar bulas e receitas/Posologias e fórmulas prévias/ Ou ainda: “Uma arte poética/ Penetrar até o centro do coração de cada código e desprogramar/ Bulas, receitas e posologias e/ Fórmulas prévias/ Pescar em águas límpidas/ Pescar em águas turvas/ Usar em mão dupla/ O arco que une caos e cosmos”.

Painéis pela cidade

A mostra conta ainda com vídeos, depoimentos do autor e uma instalação interativa, onde o público poderá deixar sua própria intervenção em textos de Waly. O escritor Leonardo Villa-Forte vai colaborar com três instalações do “Paginário”, projeto de sua autoria que enche de grifos literários alguns muros da cidade. Serão três painéis: um na biblioteca, um na Rua da Alfândega e um na estação de metrô da Central. Já a filósofa Rosa Dias vai participar ministrando semanalmente jogos de leituras com convidados.

O antropofagismo de Oswald de Andrade dá origem a um esboço de cérebro Foto: Reprodução
O antropofagismo de Oswald de Andrade dá origem a um esboço de cérebro Foto: Reprodução