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O universal e o particular na nossa literatura
PublishNews, 24/01/2012
O universal e o particular

Há algumas semanas a jornalista Eliane Blum escreveu um artigo na revista Época sobre as dificuldades que os agentes literários que trabalham com autores brasileiros têm para vender seus títulos. Dizia Eliane, citando agentes literários, que “os escritores americanos conquistaram o direito de ser universais para a velha Europa e seu ranço colonizador – já dos brasileiros exige-se uma espécie de selo de autenticidade que seria dado pela ‘temática brasileira’”.

O texto da Eliane é muito interessante e levanta questões bem pertinentes, mais além do que trato aqui. E faz pensar sobre o assunto (o que, para mim, é realmente sua maior virtude). Disso resultaram algumas reflexões que desejo compartilhar.

Primeiro fato: o escritor brasileiro mais traduzido na atualidade é o Paulo Coelho. Independentemente de quaisquer considerações sobre suas virtudes (ou não) literárias, uma coisa é certa: Paul Rabitt não tem “temática brasileira”, definitivamente. Aliás, uma “acusação” – dentre tantas – que lhe é feita é precisamente a de nem ser conhecido como brasileiro. Talvez ele seja “o estrangeiro domesticado que mora dentro deles”, como diz Eliane. Seus romances-receituários de peregrino, etc. etc., abordam precisamente os famosos temas universais: solidão, busca espiritual, redenção.

Segundo fato: dois dos autores brasileiros mais prestigiados no exterior também não são conhecidos pela “temática brasileira”. Clarice Lispector e Moacyr Scliar são prestigiados pela linguagem e pela universalidade de seus temas. Se há algo de peculiar aos dois é essa universalidade passar por uma certa “ótica judaica”, coisa, a meu ver, altamente duvidosa.

São dois exemplos para relativizar essa exigência da “temática brasileira” nos autores traduzidos. O que não exclui os problemas mencionados pela Eliane Blum, mas alerta para não cairmos em outro clichê.

Terceiro fato: recentemente traduzi para a Leya um romance de uma autora americana cujo título original é The chocolate chip cookie murder. É uma história na qual uma dona de loja de cookies no cafundó dos EUA, num desses lugares onde neva durante metade do ano, acaba ajudando a resolver um assassinato (os chocolate chip cookies feitos por ela estavam no colo do falecido...). E estou traduzindo um livro de contos, para a Record, da Edna O’Brien, Saints and sinners. Os vários contos transcorrem em Londres, Nova York, e mesmo em uma cidade e um país desconhecidos. O The Guardian, na resenha do livro, diz que “a suntuosa e melancólica nova coleção de contos é habitada não tanto por personagens sagrados ou malditos, mas por personagens imperfeitos que todos reconhecemos: os tristes e deslocados, os esperançosos e os com dor-de-cotovelo – pessoas que habitam integralmente em seu presente complexo e, no entanto, antecipam as perdas que sobre eles cairão”. O’Brien é reconhecida como um dos epítomes da literatura irlandesa contemporânea. Seus livros, ainda que quase sempre contenham elementos marcantes da vida social irlandesa – alcoolismo, violência, uma certa mentalidade “tribalista” e a marca do feminismo –, são estimados pela universalidade das situações que seus personagens vivem. Da sua aldeia, O’Brien mostra o mundo, como já disse Tólstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

A que nos leva essa coisa de que os estrangeiros buscam o pitoresco na nossa literatura para publicá-la? E como nós publicamos aqui livros sobre uma senhora que fabrica cookies no Meio Oeste americano?

Evidentemente temos que considerar, sempre, o poderio econômico da indústria editorial americana, que leva de reboque os autores ingleses e alguns outros canadenses, australianos e neozelandeses. Isso é mais que um pano de fundo, é uma contingência avassaladora. Os caras jogam bruto, e às vezes para comprar os direitos de um bom autor é-se obrigado a levar um contrapeso, como antigamente se dizia nos açougues, levar um osso para a sopa. Some-se a isso a refração dos americanos a tudo que seja estrangeiro (os ultraconservadores Romney e Gingrich são “acusados” de saber falar francês!) e a exígua proporção de apenas 3% de todos os livros lançados nos EUA serem traduções, e se pode ter ideia da dificuldade de vender autores estrangeiros por lá.

Mas apenas isso não explica tudo, e duas séries de reflexões me vêm à mente.

A primeira. Será que alguns dos agentes simplesmente não sabem vender a nossa literatura? Explico: se chegam de cara anunciando que tem um autor brasileiro para vender, abrem espaço para as defesas se armarem. Que tal começar pelo conteúdo do livro, pelos aspectos universais da história contada, e terminar pelo fato de ser brasileiro? Não sei como o Luiz Schwarcz vendeu o Milton Hatoum da primeira vez, mas o fato é que Manaus, em Relato de um certo Oriente, é irrelevante para o conteúdo do romance. Poderia ser Lagos, Bogotá ou Paris, e o relevante é a dinâmica que se estabelece entre os personagens. A “arquitetura imaginária” do Milton poderia ser construída em qualquer cidade em que houvesse uma colônia libanesa, ou quiçá uma colônia qualquer de emigrados. Será que o Conrad recebe a estima crítica que tem porque descreve lugares exóticos ou por tratar de assuntos que eventualmente são enfrentados por seres humanos em lugares distantes de suas terras? Lord Jim é personagem da literatura universal porque é um inglês covarde aportado no Oriente ou porque é um covarde envolvido com seus remorsos, seja lá em que cafundós se esconda?

Muitos dos agentes literários que lidam com a nossa literatura chegam a ela levados por sua atração pelo Brasil. É natural que a nossa literatura chegue a eles por ser brasileira. Mas será que todos percebem o alcance universal do que é relatado em nossa aldeia, e que é isso que pode tornar um romance atraente para o leitor estrangeiro?

Estou falando aqui no abstrato, e certamente sendo injusto com muita gente que se empenha na difusão dos nossos autores no exterior. Mas devo dizer também que uma parte dessa responsabilidade cabe aos editores: examinar o catálogo e uma atroz incapacidade de saber vender para o exterior preparado pelo programa da Apex de apoio à presença dos autores – textos preparados pelos editores – é algo deprimente. Além do inglês péssimo de algumas traduções sem qualidade, macarrônico, a abordagem da apresentação revela vários casos de provincianismo e uma atroz incapacidade de saber vender para o exterior.

A responsabilidade dos editores também se manifesta no tratamento do mercado interno. O Chocolate chip murder exemplifica o que quero dizer. A indústria editorial americana explora com vigor uma grande variedade de segmentos de mercado. Cria mercado para seus produtos. Evidentemente livros sobre senhoras cozinheiras do Meio Oeste foram publicados para atingir um desses segmentos. Quer tenha sido escrito por iniciativa da autora ou não, o fato é que é publicado porque as editoras buscam de modo consistente atingir os vários segmentos.

Pergunto: que editora brasileira se preocupa com isso? Quem pretende, por exemplo, explorar o mercado do Centro-Oeste, região da fronteira agrícola em expansão, rica em dinheiro e rica em temas, problemas e autores também, que vivem por lá editando localmente e sem nenhuma repercussão? Sem repercussão porque as editoras locais são provincianas, amadoras, e vivem mais de serviços gráficos prestados ao governo, editando vários desses autores para atender a vaidades e não para desenvolver o mercado potencial. E as grandes editoras do sudeste pouco se preocupam em desenvolver produtos para esses segmentos e comercializá-los com eficiência. A nossa diversidade, como diz a Eliana, é, em grande medida, perdida para as editoras, tanto cultural quanto comercialmente.

Certo, temos os problemas conhecidos de distribuição, de falta de livrarias e bibliotecas.

Porém, mais certo ainda é que é fácil publicar as traduções (e não os culpo por isso, com certeza). Só que eles parecem não perceber que existem possibilidades de ganhar dinheiro desenvolvendo esse imenso mercado em potencial com livros que atendam a expectativa desses leitores em potencial. A indústria musical faz isso: aí estão as centenas de duplas sertanejas, que nascem por lá e se espelham pelo Brasil. Ou o brega paraense, que vai pelo mesmo diapasão.

A indústria editorial brasileira, particularmente no segmento “trade”, dinâmica que é em muitos aspectos, não tem a imaginação e a disposição para ganhar dinheiro com a literatura nacional. E se acomoda.

É necessário, entretanto, chamar atenção para mais uma coisa: nem o universal nem o particular estão no umbigo dos autores. Olhar para o próprio umbigo, e dissertar sobre problemas umbigais, não é sinal de universalidade. A literatura francesa, quando se dedicou a essa forma de autoimolação nas décadas de 50 e 60, perdeu o resto de espaço que tinha conquistado e escancarou de vez a porta para o domínio do inglês.

Em tempo, o Chocolate chip cookie murder, além de divertido, tem ótimas receitas de biscoitinhos...

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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