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O queijo, os vermes e a cultura impressa
PublishNews, 08/10/2010
Neste momento em que o livro digital está na pauta do dia, Roney Cytrynowicz retoma a obra “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg

De repente os livros e a cultura impressa começaram a ser olhados como se fossem obsoletos e portadores de certo arcaísmo, ao serem confrontadas com a cultura digital, o e-book e o que as tecnologias oferecem como recursos novos e modernos. O livro impresso se tornou, assim, um tanto antiquado, estático, como se a informação, a cultura e as artes que eles encarnam fossem manifestações de um século e um modo de produzir e pensar que ficou para trás.

Em momentos como este, de transformação veloz dos paradigmas tecnológicos, é sempre interessante olhar outros momentos históricos de ruptura. Por isso, vale a pena conhecer a história de Menocchio, contada pelo historiador Carlo Ginzsburg no livro O Queijo e os Vermes, publicado na Itália em 1976 e lançado em português pela Companhia das Letras em 1987.

Menocchio, aliás, Domenico Scandela, nasceu em 1532 em Montereale, pequena aldeia na região de Friuli no norte da Itália. Moleiro de ofício, ele foi acusado de herege pelo Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Baseado na leitura de alguns livros e em uma arraigada tradição oral (também mitológica) camponesa, ele criou uma cosmogonia própria que explicava a origem do mundo de forma naturalista e sem a intervenção divina. Menocchio defendia a tolerância, um certo igualitarismo, a renovação da sociedade e possuía uma concepção “teimosamente materialista”, escreveu Ginzburg: ele “não admitia a presença de um Deus criador. De um Deus sim – mas era um Deus distante, como um patrão que deixa suas terras nas mãos de ‘feitores’ e ‘trabalhadores’”. E era assim que explicava o início de tudo: “Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos (...) e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses formam os anjos”. Ao reler os livros que o moleiro conheceu e interrogar de onde vieram suas idéias, Ginzburg investiga como se dava o processo de leitura individual realizada por um camponês no século 16.

Seguindo os manuais de interrogatório e confissão (sob tortura), os inquisidores tentaram enquadrar e classificar a heresia de Menocchio em uma das já codificadas, mas todo esforço foi em vão. Menocchio, rebelde irredutível, era um homem que pensava realmente por conta própria, em um mundo – do Renascimento e da Reforma Protestante – no qual o próprio conceito de indivíduo e a possibilidade de pensar por si estavam apenas se esboçando. Na Idade Média, homens e mulheres nasciam dentro de estratos e ordens rigidamente estratificados: nobres, cavaleiros, camponeses, membros de uma corporação de ofício, de uma ordem religiosa e assim por diante.

Mas como foi que Menocchio chegou a pensar por conta própria e se tornou um indivíduo no sentido moderno do termo? Para que a sua singular compreensão do mundo emergisse, escreveu Ginzburg, “foram necessárias a Reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pode pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças à segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele. Nas frases ou nos arremedos de frases arrancadas dos livros, encontrou os instrumentos para formular e defender suas próprias ideias durante anos, junto aos seus concidadãos num primeiro momento, e, depois, contra os juízes armados de doutrina e poder”.

Assim, afirma Ginzburg, Menocchio “viveu pessoalmente o salto histórico de peso incalculável que separa a linguagem gesticulada, murmurada, gritada, da cultura oral, da linguagem da cultura escrita, desprovida de entonação e cristalizada nas páginas dos livros. Uma é como um prolongamento do corpo; a outra é ‘coisa da mente’. A vitória da cultura escrita sobre a oral foi, acima de tudo, a vitória da abstração sobre o empirismo. Na possibilidade de emancipar-se das situações particulares está a raiz do eixo que sempre ligou de modo inextricável escritura e poder”. Foi quando a invenção da imprensa “libertou” a escrita que este poder (antes restrito a castas particulares, como no Egito) se disseminou pelo mundo. “A ideia da cultura como privilégio fora gravemente ferida (com certeza não eliminada) pela invenção da imprensa”, escreveu Ginzburg. Menocchio entendeu que dominar a escrita e a leitura (dos adversários da Inquisição) era uma fonte de poder.

Passados cinco séculos, extrair analogias é uma tentação a ser evitada, mesmo que a cultura digital pareça muitas vezes com a cultura oral, “murmurada” em sua estrutural descontextualização, empirismo e plasticidade intangível, além de palpável prolongamento do corpo por meio de aparelhos com interface cada vez mais amigáveis em um sistema que indiferencia corpo e exterior, vida privada e vida pública (a discussão sobre poder e liberdade, entre as culturas impressa e digital, é certamente mais complexa).

A cultura oral tem sido considerada, no século 20, um reduto de resistência da cultura popular diante dos poderes do Estado e de outras esferas. Mas a vitória da abstração e das “coisas da mente” – particularmente através da difusão do livro e da cultura impressa – foram, sem dúvida, desde o século 16 de Menocchio, condutores da difusão e da relativa hegemonia das ideias liberais, progressistas e republicanas.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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