Feminina, a África de Castro Alves não se entrega fácil. Seu choro lancinante, que já atravessou bem mais de um século, ainda agora afasta os lugares-comuns da História. Protagonista de alguns dos versos abolicionistas mais famosos de todos os tempos, é uma mulher que encarna a dor de todo um continente. Pode-se dizer, hoje, que vê sua sina renovar-se, em diferentes épocas, de diferentes formas. Mas persiste de pé nas areias do deserto, envolta em sua aura misteriosa, entoando a força perturbadora de seu canto.
Chamado o “Poeta dos Escravos”, Castro Alves escreveu os versos de Vozes d’África num único dia de abril. O ano era 1868, e o Brasil ainda estava mergulhado no sistema escravista e nas amarras da monarquia. O artista viria a morrer apenas três anos depois, sem ter visto a abolição e a proclamação da República. Ainda assim, foi uma das vozes mais enérgicas de seu tempo, em prol da liberdade e da justiça.
No ano em que o continente-mulher de Castro Alves está sob os holofotes do planeta todo, ao sediar pela primeira vez uma Copa do Mundo de Futebol, nada mais justo do que renovar o pedido de clemência exposto em seus versos. Assim, Vozes d’África (Escrita Fina, 48 pp., R$ 36) surge com a proposta de tornar o canto do poeta mais próximo dos jovens leitores.
Para isso, conta com um prefácio inédito do escritor Nei Lopes, incansável estudioso da presença africana na cultura brasileira. Em seu texto, o pesquisador explica como Castro Alves foi buscar, na Bíblia, os argumentos em defesa do continente. E esclarece como o livro sagrado conta a história da mulher que, vendo um viajante negro, salvo do Dilúvio Universal na arca de Noé, se oferece a ele como esposa. Ela se chama África, e não sabe que está se juntando a um marido amaldiçoado.
É essa mesma mulher, dama estropiada, que narra a Deus o seu martírio, enquanto o compara aos privilégios de suas irmãs Europa e Ásia. E é também ela que acusa: a América, “irmã traidora”, “condor que transformara-se em abutre”, se nutre de seu sangue.
A nova edição traz desenhos de André Côrtes, ilustrador que é uma referência quando o assunto é a união das artes plásticas com a valorização da cultura popular. No fim do livro, um glossário explica o significado de muitas palavras do texto, tornando-o ainda mais próximo da nova geração de leitoras — e provando a força ainda atualíssima de seu autor.
O autor
Conhecido como “Poeta dos Escravos”, Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em 1847, na Bahia. Foi a figura literária mais expressiva do condoreirismo, a terceira fase do romantismo brasileiro, cujo foco eram as causas sociais, principalmente a abolicionista e a republicana. Morreu jovem, com apenas 24 anos, debilitado pela tuberculose e por um acidente. Mas foi tempo suficiente para que escrevesse alguns dos textos nacionais mais belos em favor da liberdade e da justiça. Além do poema “Vozes d’África”, é autor de obras como O navio negreiro e Espumas flutuantes, seu único livro publicado em vida.
O ilustrador
O artista plástico André Côrtes é o autor das aquarelas de abertura da série Ó pai, ó!, da Rede Globo. Participa de um projeto de arte-educação na comunidade quilombola Campinho da Independência, em Paraty, e ganhou o prêmio “Interações Estéticas 2009”, da Funarte, para realizar residência artística na comunidade da Serrinha, em Madureira, acompanhando o grupo de Jongo. É professor de desenho da PUC-Rio.

