Eu já havia lido Sérgio Sant’anna quando o encontrei pessoalmente. Vinha de ler O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, prêmio Jabuti de 1983. Por essa época, concluía meu mestrado e dava aulas em uma faculdade de comunicação e letras onde, por coincidência, seu filho, André Sant’anna, músico e também escritor, era meu aluno. Ao me ver adotar o livro do pai, André revelou sua identidade e acabamos chamando o Sérgio para uma conversa com seus colegas. Naquela época, minhas aulas já eram rodas de leitura muitas vezes com presença de autores. Lá, ainda no início dos anos 80, foram de Nélida Piñon a João Gilberto Noll, Chacal e tantos para ler e conversar sobre seus textos. Muito depois, essa atividade entraria no CCBB e se espalharia por toda a parte.
Sérgio era um sujeito calado e – à primeira vista misterioso – mais para tímido, eu diria. Num primeiro momento talvez nos inibisse sua quase mudez. Mas assim que se sentia à vontade, era possível penetrar numa vida simples, quase monástica, sem mistérios, cotidiana, talvez até banal para quem o lesse e descobrisse o universo expandido e ousado de seus contos, romances, peças teatrais e poesia. Sim, poeta. No ano de 1984 quando o levei para ler com meus alunos, ele acabara de publicar Junk Box, seu segundo livro de poemas e me presenteou com um exemplar.Daí por diante, tive o privilégio de tê-lo ao alcance do telefone, de encontros fortuitos na rua e mais adiante, inclusive, como professor fundador da Estação das Letras, hoje Instituto, como nosso parecerista, além dos muitos eventos aos quais acorria sempre que convidado. Em 2017, tivemos a alegria de recebê-lo para ler O conto zero na (último evento ao qual compareceu na nossa sede). Mas foi na atividade de analista/parecerista literário que todo seu ser intelectualmente brilhante, absurdamente simples e ético se revelou. E já direi como.
Vejam bem: nossa amizade circunscrevia-se a eventos, a algumas ideias trocadas em encontros ao acaso na rua das Laranjeiras, onde morávamos ambos. Não era difícil reconhecê-lo pelo caminhar encurvado, dificultoso. Sua estatura de mediana a alta (para um homem) e o rosto inconfundível: oval e muito branco, olhos miúdos e quase verdes(?), com olheiras profundas. Sofria de um glaucoma no olho direito do qual – até onde sei – pouco ou nada enxergava. Um de seus assuntos preferidos era a saúde, os problemas circulatórios graves que tinha e as novas leituras que andava fazendo. Gostava de descobrir novos autores embora, de cara, tivesse implicado um pouco com as oficinas literárias assim que elas começaram a proliferar. É muita gente escrevendo, havia comentado com sua voz anasalada na época, não haverá editores para tantos.
O mais importante em todo o texto de Sérgio foi a entrega total ao serviço, o que talvez outro fizesse mais maquinalmente, burocraticamente. Mas ele, não. Tudo sempre era muito sério, muito a ser considerado. Vê-se nele o leitor atento à tarefa de ajudar, de esclarecer, de não ludibriar a fragilidade da ignorância, de encaminhar situações, personagens, espaços, valorizando o que há de valor, levando a refletir (nunca a desistir) sobre aspectos negativos ou discutíveis. E isso tem um nome tão fora de moda, talvez: respeito.
O parecer que transcrevo é inédito. Dá-nos a medida de quem foi não somente o indivíduo Sérgio Sant’anna - um brasileiro, carioca, fluminense, que havia cursado direito, professor na Escola de Comunicação da UFRJ- mas o autor de livros que inauguraram uma nova era para a ficção brasileira dos anos 70/80 pelo caráter experimental que imprimiu a temas urbanos, utilizando-se de formas/técnicas transgressoras, vanguardistas, num momento bastante fértil da nossa literatura, momento em que era difícil alguém se destacar. Em sua biografia literária constam diversos prêmios como o Jabuti, Portugal Telecom e Clarice Lispector. Pois bem: nesse parecer, não encontramos mais do que um sujeito simples, conversando com outro sobre as questões que mereciam ser exploradas melhor no texto, avaliadas sem pré-julgamentos nem maniqueísmos, sempre preocupado com a justeza da análise e de uma sinceridade avassaladora.
As lições que dele recebi – e não foram poucas – ficavam por conta da sua própria forma de ser e de lidar com a vida. Um modo curioso, digamos, de existir, um existir quase literário, mas ao mesmo tempo real. Por exemplo, em 2003, eu trouxe ao Brasil, entre outros, o autor somali Nurudin Farah para participar das Leituras de África e organizei na minha casa um jantar onde convidei alguns poucos amigos de literatura para conhecerem o escritor. Sérgio, meu querido e admirado vizinho, veio. A reunião estava animada, falava-se de literatura, política, África por óbvio, mas Sérgio entrou quase mudo e saiu calado. Não era um silêncio afrontoso, claro: ele acenava com a cabeça, sorria com os olhos e com observações monossilábicas. Estávamos entre colegas, digamos, mas Sérgio não abdicava de seu posto de observador silencioso e atento. Eu estranhei aquilo mas sabia de seu temperamento mais difícil e deixei a questão de lado.Qual não foi minha surpresa quando no outro dia ele ligou para agradecer e comentou largamente os assuntos todos que haviam surgido durante o jantar. E com detalhes. Ainda falou que gostaria de encontrar – se fosse possível – com meu amigo somali. Desliguei o telefone aliviada. Inacreditavelmente, ele havia aproveitado cada minuto. A impressão muito nítida que tive era que ele havia saído dali com um texto pronto, um dos tantos que escrevia a partir dos espaços em branco da página, como no conto que também vou transcrever ao final, o famoso Conto/não conto, uma aula magistral de narração, aliás, o que ele sempre fez dentro e fora da sua vasta obra, inclusive a poética, como demonstram esses versos tirados ao acaso do Junk Box cujo título é Poema Antigo). Neles sua veia sarcástica, sua espantosa densidade de pensador, sua modernidade de pensador e poeta, silêncio de observador:
Escreveram-se, nos últimos anos, poemas demais com a palavra
pedra
Poemas brancos, vítreos, secos, lacônicos como um
pigarro
As imagens de rios lentos, o sertão, montanhas mineiras
garimpo
Sua forma era contra o discurso, o longo, restando o vocábulo
ou quase
Tornou-se uma regra, como ir à missa, ou moda como ser
magro
Como se alguém para conhecer da fruta
a semente
lhe arrancasse a casca, lhe devorasse
a carne
E depois , olhando ao redor, o vazio, o pasto
o barro
traçasse da fruta , no solo, apenas o lugar comum
geométrico
Ou riscasse na pedra a própria palavra
pedra
Talvez buscando nela a fixidez do que não se torna
podre (...)
(...) Ora direis, isso já foi feito outrora por poetas
tísicos
e agora estamos na era do exato, do cômputo, e de uma nova
imagem.
No entanto me dou ao direito de vomitar este último
espectro
semelhante ao delírio de um literato proferindo seu
discurso
numa academia de província para um público celestialmente
ébrio
de palavras tais como tugúrio, ninfa , efeméride e
unicórnio
e que por fim todos aplaudissem, como se uma ilusão houvessem
materializado
Nesse maio de 2022, fez dois anos de sua partida a bordo da Covid-19 que levou tantos outros autores, muitos amigos, pessoas queridas. Mas é para Sérgio essa lembrança inusitada. A lembrança da absoluta disponibilidade para ser ele mesmo, para explicitar suas opiniões, suas ousadias literárias ou políticas. Se não jovem em idade, jovem sempre para questionar e experimentar. Antes de partir, fez de sua página no Facebook uma tribuna fortíssima de opiniões e comentários, inclusive e principalmente políticos, com a veemência e sinceridade de sempre. Vivia para a ficção, mas com os dois pés bem plantados na terra, quase adivinhando que se retiraria muito cedo desse mundo onde ainda poderia nos surpreender muito mais.
Conto (não conto)
Parecer inédito sobre o livro Horacio Soares, feito pelo Sérgio
Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.